Capitulo XIII - Pesadelos
Havia mulheres gritando. E crianças também. Bebês. O fogo que parecia lamber as paredes era apenas uma série de fogueiras acesas para iluminar o lugar. Uma tenda? Uma caverna? Não dava para saber. As mulheres gritavam cadenciadamente, percebeu. Era um coro: havia dor, mas também preocupação. Partos coletivos. Os curandeiros estavam vestidos de negro, com máscaras. Porque não podiam deixar ver seus rostos? Um par também vestido de preto e mascarado acompanhava tudo a certa distância. Os recém-nascidos eram levados até eles. Uma espécie de seleção? Uns para esquerda, outros seguiam a direita, mas outros eram levados para outro lugar. A visão seguiu o curandeiro que levou um dos recém-nascidos. Havia urgência em carregá-lo para longe. Uma carroça esperava, outras crianças gemiam em cestas cobertas de tecido e palha.
Não. Crianças não!
Mikayla acordou sobressaltada, assustando Fiolon, que
derrubou o vidro de tinta sobre as próprias anotações.
– “Acho que tive um sonho ruim”
– “Percebi. Mas tem certeza de que fora sonho?”
– “Não sei... Acho que foi influencia do assunto de
antes de dormir. Sonhei que mulheres estavam parindo e dentre as crianças
normais havia... monstros”
Fiolon suspirou.
– “Pode ter sido culpa minha. Estava lendo justamente
sobre como os desapare-cidos criaram novas espécies. Eles usaram todo o tipo de
fêmea, inclusive humanas”
– “Cruzes!” – pensou Mikayla, mas uma recordação
longínqua lhe veio à mente: mais alguém já
lhe falara sobre um lugar que faziam experiências. Um lugar de escuridão.
Muitos dias já haviam se passado e eles permaneciam
hospedados com D. MacAran. Trocaram a ajuda no sítio pela leitura do livro, mas
não chegaram à sua metade. O velho achou um preço barato, e muitas noites se
juntou a eles sobre conjecturas do que ocorrera. Fiolon compartilhou com ele
toda a história da guerra entre as duas terras sob a ótica de Ruwenda, através
de baladas. Só não se sentiu confortável para cantar a balada que narrava a
morte da arquimaga Haramis, não por ter presenciado o fato, mas pelo nome desta
não ser bem vindo àquela região. Haviam percebido isto enquanto circulavam
pelas tribos: todos compartilharam a opinião de que a arquimaga abandonara o
cuidado à Labornok – o que infelizmente era verdade.
– As pessoas que vivem o dia-a-dia sentem-se muito distantes destas questões de poder. – explicou-lhes D. MacAran, quando percebeu que o povo não parecia querer exigir que os donos do poder cumprissem suas obrigações com eles. – É como o olhar de uma lagarta da terra, entendem? Elas não querem saber que há um ser humano que trabalha na terra que elas vivem, e que dependem de agentes da natureza para que a terra fique úmida ou seca: para elas a única coisa que importa é cavar, pois se ela parar para culpar os grandes das coisas, seu trabalho não termina, fica incompleto ou pior, corre o risco de não levar a comida que precisa no final do dia. Os grandes é que deveriam olhar para as minhocas e não o contrário. Mas não é assim que acontece.
A amiga de D. MacAran, D. Angélica, esteve lá uma
tarde com as netas. Eram duas jovens bastante bonitas cujos pais trabalhavam na
cidade. Tentavam convencer D. MacAran a mudar-se para a cidade com elas, pois
as coisas não estavam boas nos arredores da floresta.
– Muitos atravessam a ponte e posso vê-los do Moinho.
Quando vejo algum perigo colocamos panos vermelhos nas pás...
– Porque os
panos? - Fiolon quis saber.
– Dão a
impressão de fogo. – disse uma das meninas. - O viajante desvia e pega o
caminho do rio.
– Há algo
na floresta MacAran, - prosseguiu D. Angélica - algo muito ruim. Não haverá ninguém a quem
pedirmos ajuda se algum mal nos acontecer. É um tempo de escuridão...
De novo, Mikayla teve a sensação de que já ouvira a
expressão antes, numa outra época. Ela e Fiolon acompanhavam a conversa
fingindo desinteresse, mas atentos às informações. Talvez esse fosse o perigo
que o sentido da terra de Mikayla lhe transmitia. Olhou para Fiolon e a
mensagem foi clara: precisavam partir.
D. MacAran
não escondeu lamentar a partida dos jovens, havia se afeiçoado a eles. Por
alguma razão aparentemente boba, mas claramente instintiva, acreditou que eles
eram herdeiros dos Desaparecidos. A sede de conhecimento que o casal tinha pelo
livro era curiosa e D. MacAran ficava feliz em esclarecer suas dúvidas,
relembrava-lhe a época de tutor. A partida, porém, era necessária, isso ele
podia compreender. Em três dias os jovens concluíram as tarefas pendentes no
sítio: consertos de cercas, limpeza da terra e trato dos animais. Fiolon
lamentava não terem terminado o livro e queria crer que encontraria uma cópia
do mesmo em algum lugar de Labornok.
– Acredito que outros exemplares existam sim rapazinho, pelo menos no Liceu, se não o consideraram ultrapassado. Este aqui encontra-se na família há gerações. No liceu certamente encontrarão tudo que a gente da sua idade detesta: filosofia, matemática, física, ciências...
– O senhor
só pode estar brincando: é justamente o que nós amamos! – disse Mikayla.
– Vocês são
os jovens mais extraordinários que já conheci!
Despediram-se numa manhã ensolarada – não porque a arquimaga quis, realmente fazia Sol. Os froniais bastante descansados e preguiçosos, já que exercitaram pouco, demoraram a pegar o ritmo de trote aceitável, o que lhes tomou um tempo considerável pela manhã. Já avistavam a ponte quando resolveram fazer um pequeno desvio e cumprimentar D. Angélica e suas netas, tão gentis durante a visita. Encontraram o silêncio. Algo agourento invadiu suas almas, e puseram a chamar e a vasculhar o interior da casa. Nada. Apenas a bagunça de bens revirados.
– Elas foram atacadas! – Mikayla deu palavras ao que via. Do lado de fora, Fiolon esquadrinhava o local à procura de pistas quando algo respingou em seu ombro. Era viscoso e vermelho. Sangue. Mal teve tempo de olhar para o alto e o grito de Mikayla lhe atingiu: o choque fez com que compartilhassem involuntariamente a visão da arquimaga. Das janelas do piso superior da casa, ela via lençóis brancos manchados de vermelho pendurados no moinho.
Lençóis que
ocultavam os corpos enforcados de D. Angélica e suas duas netas.
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