quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Bolinhas de Gude Azuis


Às vezes fazemos coisas estúpidas em nossas vidas. Grandes ou pequenas, essas “coisas estúpidas” nos acompanham para sempre.

Era verão de 1982. Aquela estrutura estranha pairava na praia do Arpoador onde eu e meus amigos costumávamos mergulhar na infância. Mas enquanto alguns vibravam ao som de “areias escaldantes” eu, um ex-“menino do Rio” suava em um terno entregando despachos para cima e para baixo, nas quentes ruas cariocas, da zona norte à zona sul. Eu era ambicioso, e aos vinte e poucos anos já tinha um apartamento micro em Copacabana, bem longe da praia é verdade, mas era em Copacabana. Apesar da adolescência festeira, a ditadura fez-me  ingressar cedo no mercado de trabalho, e ao contrário da maioria das mentes jovens daquela época, que gritavam por liberdade e ordem, eu só queria uma melhor condição de vida para poder aproveitar a vida sem passar por necessidades no dia seguinte. 

Assim, trabalhava com afinco. Até o dia em que ela cruzou o meu caminho e mudou meu modo de pensar.

Encerrava meu último expediente antes das merecidas férias, após quase 7 anos trabalhando e estudando sem  parar. Estava cansado, mas ansioso; não planejara nada em especial além de praia, chope, um show aqui outro ali, essas coisas. Caminhava assobiando para casa, retardando cada passo e aproveitando o descompromisso, sentindo a liberdade, observando as crianças brincando nas ruas próximas ao meu prédio – naquela época era comum ver crianças divertindo-se na rua durante o verão. Havia uma menininha de vestido xadrez e um laço frouxo pendurado no cabelo que tentava em vão acompanhar a correria das outras crianças. Cheguei em casa, tomei um banho demorado e abri uma cerveja – a única da geladeira - e me joguei no sofá. Mas a noite estava bonita e resolvi caminhar na praia. Qual não foi minha surpresa quando, em frente à portaria, sentada nos degraus da escada, estava a mesma menininha de vestido vermelho que eu vira mais cedo?  Aparentava mais ou menos dois anos e estava suja de tanto brincar. Perguntei ao porteiro quem eram seus pais  e ele disse que não havia reparado que havia uma criança ali. Fui até ela e perguntei-lhe onde estava sua mãe mas não me respondeu. Tinha um olhar parado, atento à rua, como à espera de alguém. Não parecia assustada nem perdida: tinha a segurança e a certeza de que alguém logo logo viria buscá-la.

Entenda: eu poderia ter partido. Poderia ter feito minha caminhada, tomado mais algumas cervejas na praia, enfim, seguido o que decidira fazer. Mas aí esta história não aconteceria. O fato é que  fiquei ali sentado ao lado daquela menina, cuja imobilidade e cachinhos castanhos a balançar na brisa faziam-na parecer uma boneca de porcelana. Era intrigante estar sentada quieta por tanto tempo, sem demonstrar um mínimo de desassossego. O porteiro se aproximou de nós, trocou comigo algumas palavras, disse que nunca a tinha visto, que poderia ser de alguma visita dos prédios vizinhos. “Mas as crianças há muito deixaram a rua e ninguém viera reclamar a menina!”, falei. Ele deu de ombros e voltou para seu lugar. As pessoas passavam, entravam no prédio, sorriam, acenavam, e ela toda poucos gestos: um inclinar de cabeça, um meio aceno com a mão, um sorriso tímido para o próprio colo... e tornava a mirar a rua. Uma vizinha nova chegou a me perguntar se era minha: “Não, estamos esperando a mãe dela!!” respondi assustado. Filhos não faziam parte dos meus planos. Mas as horas passavam e ninguém aparecia. A menina suspirava e esperava. Já havia lhe levado água, lhe dado biscoitos, mas ela não falava e  eu não sabia mais o que fazer. Percebi que o porteiro estava impaciente querendo fechar o prédio, mas só quando vi sua cabecinha tombar para frente, de sono, é que cedi à pressão: tomei-a no colo e a levei pra casa.

Um homem acolher uma criança de dois anos em seu apartamento não era visto com tanta maldade naquela época graças à Deus, por isto nada de ruim passou pela minha cabeça; eu só queria protegê-la. O porteiro falou que ia dar problemas, mas ele mesmo foi testemunha que a criança estava sozinha há muito tempo sem que ninguém aparecesse. Disse que avisaria caso alguém chamasse reclamando pela criança e isso me tranquilizou, deu-me a certeza de que fazia a coisa certa. Naquela noite eu a acomodei em minha cama e fui dormir no sofá, um sono sobressaltado, à espera de que alguém batesse na porta. Mas ninguém bateu.

No dia seguinte fui até a delegacia dar parte de criança encontrada. Os procedimentos eram menos eficientes que agora – a nossa boa e velha burocracia. Esperamos por algumas horas até sermos encaminhados ao conselho tutelar. A manhã não havia sido boa, pois ela acordou assustada e eu que não tinha nada em casa para uma criança comer acabei socorrido pelos vizinhos. Ao chegarmos no conselho ela estava inquieta em meu colo, suspirava e se agitava a qualquer manifestação de deixá-la sentada longe de mim. Tive que preencher a papelada com ela agarrada em meu pescoço; segundo as normas, seria encaminhada para um lar adotivo. No momento em que a levaram ela gritou muito, mas eu sabia que seria conduzida para onde cuidariam bem dela. Eu saía do local certo de que havia cumprido com meu dever de cidadão, quando me chamaram de volta.  “Desculpe, senhor, sabemos que não tem o perfil adequado para ficar com uma criança mas todos os nossos lares estão cheios por causa das crianças perdidas no Reveillon...” foi dizendo a assistente. Eu pressupus aonde ela queria chegar, e quando me dei conta, depois de um “sim” e mais um monte de papéis, voltava com a menina para casa.

A esta altura os mais românticos devem estar me parabenizando, dizendo “nossa, que gesto altruísta ele teve!” mas a verdade é que até hoje não sei o que me levou a aceitar aquela oferta. Eram minhas férias e eu teria uma criança desconhecida em casa! Eu, que vivia para o trabalho, que não conseguia manter uma namorada sem analisar as despesas que isto traria para o meu bolso, tinha em meu tapete um bebê que só corria e sabia fazer coco (era 1982, fraldas descartáveis não eram tão acessíveis!). Eu não tinha paciência com crianças, na verdade nunca prestara muita atenção nelas além do necessário. E no entanto, ela estava ali.

 Como seria minha hóspede, comprei-lhe brinquedos e roupas. Aos poucos ela foi se soltando e começou a falar  - falar não, porque eu não entendia nada!Tentei lhe ensinar alguma coisa mas ela não aprendia. Os vizinhos souberam da história e se revezaram entre ajudar com sugestões úteis e oferecimentos prestativos e informações inúteis com comentários pejorativos. Mas à noite éramos só eu e ela em um apartamento micro de uma cidade escaldante. Semanalmente um assistente social ia nos visitar, tomava notas, perguntava se havia problemas em ela ficar mais um pouco e ia embora. Para ajudar eu coloquei um  um anuncio no jornal dando seus dados e meu endereço, mas depois que um casal lunático bateu em minha porta, achei melhor deixar a busca pelos responsáveis por conta do Conselho Tutelar!

Um mês se passou e eu resolvi contratar uma babá. Não recebia nenhuma notícia positiva e como tinha que voltar a trabalhar não podia levá-la comigo. Minha rotina tornara-se acordar, mamadeira, trabalho, casa. No retorno ao lar  a babá ia embora deixando todos os brinquedos espalhados. Um dia me deu uma bronca por não saber o nome da garota e só a chamava de Menina: como ela respondia, passei a chamar também. Mas acordar as cinco para mamadeiras, chegar tarde no serviço, chegar à tempo em em casa para dar janta, ficar acordado até tarde da noite repondo serviços atrasados estava me deixando com olheiras até os pés. Ela estava me deixando louco, e por vezes achava que a . odiava,  mais que tudo no mundo. Porém não queria tirar ela daqui.

Finalmente, seis meses após ter feito o boletim sobre ela, recebi uma intimação do Conselho Tutelar, pois os seus responsáveis haviam sido encontrados. Era um casal jovem, de olhos claros também, vestidos como se tivessem saídos do Festival de Woodstock. Falavam inglês, língua que não dominava na época mas por sorte havia uma interprete que me explicou que o casal perdera a menina na rodoviária. Então viram o anuncio antigo que eu mandara publicar no jornal, mas a agência solicitou que procurassem no conselho. Eles tinham os papéis certos, os documentos certos. Ela se jogou nos braços deles como quem revê velhos amigos, e como velhos amigos,  levaram na embora.
Naquele domingo levantei às cinco para preparar a mamadeira. quando percebi que não havia o que se preparar, ela havia partido. O apartamento finalmente estava silencioso. Tentei voltar à dormir  mas não consegui e me perguntava aflito se até não estando lá ela me atormentava. Lembrei-me de quando chegava em casa depois de um dia cansativo e aquelas bolinhas de gude azuis me olhavam pedindo um pouco da minha atenção e eu as ignorava. Olhei as horas, dava tempo: me arrumei e corri para o aeroporto. Maldito taxi, maldito trânsito, malditas horas. Quando cheguei no aeroporto já era tarde: o avião estava partindo, ela estava indo e eu não podia fazer nada.

Quando comecei este texto falando de coisas estúpidas na certa deverão estar imaginando que a coisa estúpida que eu fiz foi, sem experiência alguma, ficar responsável por aquela criança. Mas não; a estupidez pela qual me condeno é de não ter tomado o contato daquelas pessoas que levaram minha criança embora. Até hoje me pergunto se ela sente frio, se está contente, se se lembrou de falar “ombush” quando viu um, se sentiu a minha falta. Hoje aquele bebê que despertou em mim o desejo de ter uma família deve ter sua própria família, senão seus próprios netos, considerando a juventude de hoje em dia.

Naqueles dias odiei-me por nunca ter lhe falado ou apenas demonstrado o quanto eu apreciava a sua presença.. Se eu pudesse revê-la, se eu pudesse voltar no tempo... ah, tantos “sês”... De todos eles a única certeza é a de não revê-la nunca mais!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Aurora

Philip Pullman certa vez disse ao publicar um de seus contos que um conto ás vezes pode ser simplesmente um conto, uma história isolada, ou fazer parte de um romance que ainda não foi escrito. Como pequenas histórias de vidas paralelas que se cruzam, pequenos contos podem ser entrelaçados e se tornarem uma grande história.

Se é o caso do pequeno conto a seguir, só o tempo responderá...

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O tempo parou. No espaço nada se movia. Todos permaneciam em silencio absoluto; tudo se encontrava em absoluta espera. Até que enfim ela chegou. Tranquila, serena, encantou a todos com sua pureza infantil. Sim, ela era linda, e era para todos a joia mais rara do universo.

Terminada a exposição, bocejou. Estava cansada. Era tanta novidade em torno de si que ela mal conseguiu acompanhar, mas queria ver a todos. Sua mãe, a Noite, suavemente a carregou até seu dormitório e a pôs em seu cesto de dormir. Enquanto sua loura cabecinha era acariciada, suas pálpebras iam suavemente escondendo as pérolas azuis que eram seus olhos. E embalada por uma canção de ninar, dormiu, sob os olhares atenciosos do pai e da mãe.

Aquela foi a única vez em todos os tempos que não houve dia nem noite, apenas apenas a mistura de uma escuridão que não clareava e claridade que não escurecia.

Assim foi o dia que a belíssima Aurora nasceu.  

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Violinista



      Há um homem que eu vejo passar frequentemente. Na verdade eu passo; ele está parado. É um violinista.
        Quando o ouvi tocar pela primeira vez era Natal, e a melodia me encantara. Eu não tinha trocados, não pude lhe agradecer a música concedida. Mas a melodia ficou em mim. Depois, vez por outra, ele estava tocando em algum lugar das ruas por onde eu passava. E se de início havia muitas pessoas em volta admirando-o, depois tornou-se figurinha fácil, outros concorrentes surgiram e as pessoas foram perdendo o interesse.
         Mas eu não.
        Eu nunca parava, não conseguia, mas a música sempre chamava a minha atenção, me acompanhando enquanto seguia meu caminho. Por alguma razão estranha passei a olhar bem dentro dos seus olhos quando nossos caminhos se cruzavam; ele parado, eu seguindo, buscando em  sua face o rosto de um velho amigo. Tornou-se tão conhecido para mim que quando o encontrava sem os seus instrumentos, minha memória enviava a mensagem de que era alguém de quem eu gostava. “Quem é ele, de onde eu o conheço?” eu me perguntava. “Ah, já sei, é o violinista”.
      Fantasiei-lhe uma história digna dos heróis românticos do século XIX, os músicos boêmios, que tentavam a sorte de lugar em lugar, despedaçando-se em amores vãos ou em busca do sentido na vida. Eu o vejo em silencio, embriagado de alegria por uma nova composição, sozinho em um quarto mal arrumado, em uma pensão em decadência. Pode parecer estranho, mas é um pensamento que me dá paz, me leva a um estado de eterno Natal, onde a música e a poesia são os ingredientes de um viver feliz.
        Então eu viro para o lado, caio da minha cama e acordo; afinal ele é somente um violinista de rua! Alguém que resolveu ganhar algumas moedas em troca de demonstrar o seu trabalho. Nada sei sobre ele além disso.

        Ainda assim, quando o som da sua música vier me chamar e nossos caminhos se cruzarem, meus olhos vão sempre buscar os seus, minha boca vai abrir-se em um sorriso tímido, e eu seguirei adiante. Até o dia em que, talvez, pare, e numa pausa entre suas canções, tome coragem de finalmente lhe falar: “Como vai, meu amigo?”




Créditos da imagem: http://wmky.org/programs/sunday-night-jazz-showcase

Conto do Amor Perdido que nunca existiu



Casei-me com um vestido velho, de sapatos encardidos, num canto de um jardim qualquer. Ninguém viu o meu sorriso de felicidade nem as lágrimas de gratidão que rolaram na minha face quando ele me disse “sim”. Uma árvore fora o nosso padre-juiz-ministro-pastor. As folhas secas que cobriam o chão e bailavam ao sabor da brisa eram os nossos convidados. Os raios de Sol formavam o meu véu e foi o vento a sussurrar quem compôs o nosso coro, a nossa canção.

Casei-me numa tarde de primavera com um ser lindo que ninguém jamais conheceu – ele existiu somente nos meus sonhos. Quisera eu que as amigas o vissem e o invejassem, mas ele nunca aparecia quando elas estavam por perto.

Quando finalmente cresci e percebi que meu casamento fora uma ilusão, eu não fiquei triste nem zangada. Eu não me senti infeliz. Na verdade, o que eu sentia era simplesmente nada. Porque há muito tempo sofria por um amor que não vinha me buscar e quando me dei conta, já o havia matado dentro de mim.


Mas, ah... que saudade daquele lindo dia de primavera, que nunca existiu...! 




sábado, 26 de julho de 2014

Resenha #1: Uma bondade complicada

Autor: Miriam Toews



Não leia esta história se você estiver deprimido ou triste, angustiado ou algo do gênero. Você cortará os pulsos. Por outro lado, se, e somente se, você já estiver no fundo do poço, perceberá que a única saída é subir, escalar as paredes de volta ou se deixar boiar enquanto o poço enche novamente – ok, esqueça esta alternativa pois pode demorar muito e tudo que sobrará até a água atingir a abertura do poço serão seus ossos! O importante é que ao fazer esta leitura e condenar – como eu! - a nossa anti-heroína, você estará automaticamente se livrando das prisões mentais que criamos ao nosso redor.

O livro narra a história de Nomi Nickel, uma jovem de 16 anos que vive em uma cidade canadense dominada por fundamentalistas cristãos. Na visão de Nomi, aquela cidade é o típico lugar onde as pessoas escondem suas frustrações embaixo do tapete e acreditam estar fazendo alguma coisa boa. Procuram, apontam e condenam os erros dos outros na tentativa desesperada de que ninguém encontre os seus. O comportamento radical abre precedente para os dois extremos: o do bom e do mal comportamento. Os jovens como Nomi vivem a fachada de uma vida “exemplar” mas  se esbaldam com drogas e festas de fundo de quintal. Cumprem seus períodos escolares mas não há perspectiva de futuro promissor – ou, no caso o desanimadora perspectiva de nascer crescer casar procriar e morrer. Viver é consequência, uma consequência ruim até, pois pelos preceitos daquela religião, a felicidade não deveria ser incentivada –ao menos foi o que eu entendi.  

À esta altura você se pergunta: e porque ela não vai embora deste lugar? Porque fizeram isto antes dela. Sua mãe e sua irmã mais velha foram embora, deixando ela e o pai sozinhos a enfrentar a “piedade” dos cidadãos locais. Não há muros, não há amarras, mas ela se prende ao pai para não ir embora, com medo de ser egoísta como a mãe e a irmã. Há um mundo de poucas palavras entre eles, e um medo implícito em ambos de que Nomi faça como as outras. Aliás, desde o início o leitor já sabe que mãe e irmã abandonam a família – inclusive está na sinopse do livro – e tem uma breve noção do porquê. Mas á medida que a história vai avançando, vamos nos aprofundando  nos motivos de cada um, mesmo que somente sob a ótica de Nomi, e compreendendo as amarras que a prendem.  Pense em crescer achando que uma coisa é errada e de repente dentro de sua própria casa certo e errado se confrontam, e o errado vence. Como fica a sua mente?

Há uma cena particularmente interessante em que, após ser despertada mais uma vez pelos gritos da filha que chorava pela partida da irmã, a mãe de Nomi a pega pela mão e a leva na casa do pastor – que também é seu irmão. “Peça perdão à ela”, ela diz “Peça perdão à ela e diga que sente muito”. O homem está exasperado por ter acordado de madrugada e a Nomi, ainda uma criança, não entende muito bem o que a mãe quer dizer com tudo aquilo. Mas ela chorava todas as noites, não só porque a irmã foi embora, mas principalmente porque em sua cabecinha manipulada a irmã estaria à caminho ou já no inferno e ela não queria este destino para a amada irmã – ninguém quer! E a mãe sabia disso, e mais, sabia que sua filha mais nova estava sofrendo por uma coisa que ninguém tinha de fato certeza, sofrendo porque estava sendo criada sob o regime de uma fé cega que não poderia ser questionada, sem que houvesse condenação. E o pior, ela mesma, a mãe, começava a se questionar. O pedido de perdão do pastor era um jeito de dizer para a filha “Calma criança, não é tão radical quanto parece”.

E seis meses depois da partida filha, a mãe de Nomi também vai embora, e só então esta passa a questionar um pouco mais as afirmativas ao seu redor, “a bondade complicada” que dá nome á versão em português deste livro.


O livro é todo em primeira pessoa e hora se confunde como um diário de pensamentos, hora como um evento cotidiano. Nomi é uma adolescente e sua escrita é confusa e isso é chato inicialmente na história mas se revela uma tacada perfeita. Em uma frase a autora exprime toda uma ação deixando á nossa imaginação os detalhes. Por exemplo, ao invés de descrever uma cena em que põe fogo em um carro, como e porque aquele ato foi feito, ela simplesmente escreve “lavei as mãos mas ainda cheiravam á gasolina que joguei no carro em frente ao motel antes de queima-lo” ou simplesmente “podia sentir daqui o cheiro da fumaça do carro que incendiei antes de voltar para casa”. E corta para outra cena. 

Relembrando, não leia este livro se estiver se sentindo para baixo; é um livro de uma narrativa infeliz.Mas com paciência e persistência, com o auxílio da psicologia reversa pode-se tirar dele lições e buscar soluções até para os nosso problemas. Já dizia um conto em que um jovem procurava um sábio para auxiliá-lo a resolver os seus problemas dizendo que a vida não seguia adiante por causa deles. O sábio de agarra a uma pilastra dizendo que não conseguia fazer nada porque aquela pilastra não deixava. O jovem simplesmente diz "solte a pilastra". "Taí a sua resposta", diz o velho sábio.

Ás vezes não são as coisas que nos prendem: somos nós que nos aprisionamos à elas. 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Escritos feitos de Música I - Amanhã é 23


Já ouviu uma música e se descobriu criando uma história para encaixá-la? Como se tivesse criando seu próprio clipe para ela?
Então, com alguns escritores isto acontece constantemente. Basta ouvir alguns versos e lá está a vida inteira de um personagem.
Esta é a terceira história que escrevi baseada em uma música. Deveria ser publicada em agosto mas resolvi antecipar. Ela não pede uma introdução como as outras. É completa por si só.
Enfim, ainda com poucos minutos de folga...

Amanhã é 23!

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       Ela limpava o jardim quando uma brisa suave trouxe-lhe o cheiro do passado, da pequena casa vermelha onde vivera, a última em uma vila do subúrbio. Aquela época, que muitos considerariam difícil pela sua situação de poucos recursos, ela considerava como o auge de sua felicidade. Afinal, naqueles tempos, ela ainda tinha sua filha.

       - Que dia é hoje? – perguntou ao jardineiro
       - Hoje é dia 22 de agosto, senhora.

       Sim, agora entendia o porquê da recordação. Amanhã é 23. O dia do aniversário de sua filha. Aquela que criara e educara, isenta de clichês, com todo carinho, dedicação e amor que aqueles que não tiveram mães ou as tiveram ausentes poderiam ofertar. E ainda assim, perdera sua filha para o mundo.
       
       Era uma criança quieta e muito educada, o que lhe era motivo de orgulho. Nunca reclamara da falta de presentes no Natal, muito menos da pouca comida. Sorria resignada e dizia com convicção “um dia vou tirar nós duas deste lugar”. A pobre mãe sentia o coração apertar por não poder dar mais à filha. Seu corpo já não sustentava mais as jornadas duplas de trabalho, mas não esmorecia; chegar em casa e ser servida pelo modesto, porém apetitoso jantar que a filha lhe preparava com mais uma nota 10 no boletim lhe fazia crer que todo o esforço valia á pena. Viviam em um castelo sem rei. Seu tesouro não estava escondido em cofres mas no pulsar do coração de sua filha.

       Ela não sabe precisar quando tudo começou a ruir. Aos treze a menina bateu o pé e decidiu ir trabalhar. O dinheiro à mais auxiliaria nas contas e daria descanso á mãe nos finais de semana. De fato, o corpo da mulher não aguentava mais as faxinas de domingo à domingo, mas ainda assim foi com muita relutância que aceitou. Tinha um profundo medo das más companhias que sua filha poderia encontrar, afinal, sabia tão pouco da vida... ou será que sabia?
     Aconteceu que a jovem não se envolveu com más companhias, não usou drogas nem ficou grávida precocemente. Manteve-se aplicada nos estudos e competente em seu trabalho, sem nunca reclamar. Quando a mulher adoeceu a jovem tomou o lugar da mãe, provendo-a de tudo que necessitavam e um pouco mais: a casa fora consertada, móveis novos foram comprados, porém, o sorriso da filha, foi transformando-se em um esgar triste e cansado.

“Está acontecendo alguma coisa querida?”
“Não mamãe, apenas estou trabalhando demais!”
“Assim que eu melhorar volto a trabalhar e você poderá descansar!”
“Não mamãe, não quero que você faça isso. Já trabalhou demais por mim, deixe-me agora fazer isso pela senhora”

Aquelas palavras comoviam a pobre senhora. Porém incomodavam-lhe a solidão e a quietude de sua filha.

“Você nunca traz os seus amigos aqui”
“Não quero lhe dar trabalho mamãe!”

       Foi então que o homem chegou. A mulher nunca o vira de fato, apenas pelas fotos que a filha espalhara no quarto. A jovem estava feliz, a mulher também. Mas ao perguntar quando veria o tal, a breve resposta era a mesma: “quando ele puder”. O anel surgiu no dedo da filha de repente. “Ele não deveria vir aqui falar comigo?”. “Mamãe, os tempos são outros! A senhora está feliz por mim não está?”.
       O casamento aconteceu poucos meses depois. Tão de repente, que a mãe não fora convidada. “Ele não quis festa mamãe!”. Sim, ele não quis festa. Mas por que não pode ajudar a filha a escolher um vestido – não que o vestido escolhido não fosse deslumbrante com suas pedrarias e finíssimos detalhes bordados! – e daquelas pessoas estranhas nas fotos da cerimônia? “Precisávamos de testemunhas mamãe”

        A filha saíra de casa em uma daquelas chuvosas manhãs de novembro, sem levar uma peça de roupa sequer. Disse que retornaria para buscá-las, mas quando voltou foi para deixar a mãe doente em uma casa de repouso. “Entenda, eu não posso ficar com a senhora, não teria como cuidá-la em minha casa. Aqui eles poderão auxiliá-la e nada irá lhe faltar!”. Este fato acontecera há anos. Inicialmente a filha ia visitá-la todos os meses, mas com o tempo as visitas tornaram-se escassas, contornadas através de cartas; que não tardaram a rarear também. Na mais recente visita – não tão recente assim! – a mulher olhou profundamente para a filha e comparou-a com o retrato da mesma que tinha em sua cabeceira, quando aquela era mais jovem. A filha sempre fora uma pessoa quieta, isso não se podia negar, porém havia uma aura de serenidade ou determinação ao seu redor, dependendo da situação. A mulher em sua frente não apresentava isto.
“Você é feliz, minha filha?”
A pergunta pareceu surpreender a filha
“Como não poderia ser? Tenho um ótimo marido, dois filhos maravilhosos, uma bela casa... como não ser feliz?”
A senhora suspirou: não, sua filha não era feliz. Havia nela um ar de superioridade e arrogância que não lhe pertencia. E tristeza. Tristeza camuflada, enterrada no fundo da alma para que ninguém visse, ninguém percebesse, em seu falar altivo e sua seriedade. O que sua filha se tornou, quem era aquela mulher á sua frente?
“Quando vou conhecer as crianças?”
“Ora mamãe você sabe, elas são ocupadas. E meu marido não gosta que eu as traga aqui”
“Mas você ainda é a mãe, não é? Se quiser pode muito bem trazê-las”
A filha nada respondeu. Simplesmente fitou o vazio e deixou seu olhar perder-se ali por alguns segundos. Despediu-se da mãe e até então não apareceu mais.

       De repente, algo pareceu clarear do portão, libertando a senhora de sua viagem ao passado. A miopia não lhe permitia distinguir traços, mas ali estava uma jovem, trazendo duas crianças consigo. A luz do sol ia de encontro á eles, fazendo-os parecer um afresco italiano. As crianças correram de encontro à senhora no jardim e um sorriso plácido iluminou o rosto da jovem mulher que chegava.
“ - Trouxe-lhe as crianças mamãe!”
Eles se abraçaram, e o coração da senhora encheu-se de alegria. Mas ao abrir os olhos, percebeu que continuava sozinha no jardim, exceto pelo jardineiro. Uma brisa quente passou por ela, e levou o passado embora.

       - Eu tenho uma filha sabia? Ela mora em uma casa grande muito bonita, com um marido maravilhoso e meus dois netos. Amanhã é 23? É... amanhã é aniversário dela. Faz 30 anos... acho que vou separar estas flores para ela, quem sabe ela vem me visitar?


       O jardineiro sorriu e continuou a preparar a terra do jardim, Há muitos anos que trabalhava naquela casa, naquele asilo, e há muitos anos ouvia conversas como aquela. Ficaria feliz pela senhora se sua filha aparecesse.
          Mas, como já foi dito, há muito tempo que ele ouve histórias assim...




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Perseverança

No mundo dos sonhos o tempo é algo imensurável
Há dias que parecem segundos...
Segundos que parecem horas...
Agora me diga: quanto tempo de sua vida você estaria disposto a ceder para realizar um sonho?

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       Havia naquele bairro um terreno baldio, no qual o dono certa vez plantou uma bananeira e sem querer despertou ali um elemental adormecido. As bananeiras, quando não domadas, se alastram de maneira imprecisa, porém sempre em busca da água, morrendo, e nascendo daquelas que já partiram. Ás vezes, apesar da imprecisão, formam um círculo perfeito, como homens celebrando em uma fogueira ao luar.
      Era assim que a criança índia, moradora do terreno vizinho as via. Quando o luar incidia no terreno, as sombras faziam com que as bananeiras parecessem pássaros; a brisa suave lembrava uma dança de roda, quando as folhas secas de umas tocavam o caule delgado das outras. A criança via e sentia a vida em movimento naquele lugar. E sua imaginação transformava as simples bananeiras em seres de outro mundo: fadas ou fantasmas dançantes, que cochichavam segredos incompreensíveis nas noites de lua cheia.
       Foi este olhar admirado lançado pela índiazinha às bananeiras que despertou naquele Ser de essência única a vontade de tocá-la - a índiazinha nunca pusera os pés no terreno vizinho. Resolutas, as bananeiras nasciam e morriam, movimentando-se lentamente em direção à casa da menina.

      Os amores vem e vão, e se um dia a pequena amou as bananeiras, quando jovem, o luar e os raios de sol entrando em sua janela tornaram-se seus novos amores. A massa verde ali em frente impedia-lhe este prazer e ela passou a odiar as árvores, que agora via como mau agouro. Seu olhar de ódio magoou o Ser Único, mas não diminuiu a sua vontade de tocá-la; morte após morte avançava em direção à casa vizinha.

     O tempo a passou. Linhas irregulares surgiram nos olhos da índia, e a sombra abaixo de seus olhos fatigados não diminuíram a beleza do seu olhar, que às bananeiras agora era escasso, mais voltado para a criança que se agarrava em suas pernas. Ainda assim o Ser Único não desistiu, e nascimento após nascimento, aproximava-se da casa. Já estava quase a um corpo de distância quando algo o impediu: em sua obstinação não percebeu que os homens vinham cercando os limites de seus terrenos. As permeáveis cercas de arame farpado foram substituídas por tijolos maciços; sua frágil raiz não podia ultrapassá-los. Pela primeira vez chorou. E sucumbido pela dor, adormeceu. Suas filhas no entanto, ou a parte dele que nascia e morria, habituadas a seguir em direção à casa, continuaram naquela missão, nascendo e morrendo até formarem uma fileira ao lado do muro.

       Quando o Ser Único finalmente acordou, tudo estava mudado. O muro continuava ali, mas a casa da indiazinha agora era mais alta. Da janela superior dois pares de olhos negros miravam ele e suas filhas (que eram ele na essência!). Reconhecia aquele olhar, mas não sabia à qual deles dirigir o seu amor: ao rosto cujos olhos descansavam sobre a face flácida, coberta de linhas e emoldurado por uma cabeleira branca, ou para a criança aninhada no colo da primeira, de pele firme e olhos brilhantes?

       Conversavam sobre ele:
       - Pedirei ao vizinho para que corte algumas, assim tomarás Sol ao amanhecer...
       - Não faças isso vovó, eu gosto delas.  Parecem as tribos antigas reunidas na fogueira sob a luz do luar!

       A velha sorriu, e o coração do Ser Único recobriu-se daquele amor antigo. A brisa que corria tornou-se um vento maroto, e a criança de olhos de jabuticaba e cabelos cor da noite estendeu as mãos através da janela para senti-lo. "Um braço de distância agora", pensou o Ser Único. 
      Uma de suas folhas rígidas cedeu á insistência do vento, prestes a tocar nas mãos da criança.
     - Cuidado! - gemeu a avó, mas já era tarde: a folha cobriu as duas mãos, a da velha e a da criança, numa fração de segundo que para o Ser Único seria eterno.

Muitos anos mais tarde o fogo lambeu aquela terra. Mas o Ser Único vivente naquelas bananeiras morreu feliz...!  



domingo, 23 de fevereiro de 2014

Desejo para o ano que vem...

Porque ás vezes, perceber a grandeza do que somos é o que nos torna fortes para enfrentar o mundo...
Com quase 3 meses de atraso:
                   
Feliz Ano-Novo!

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            Era véspera de final de ano. Como sempre fazia, sentou-se à escrivaninha para enumerar as coisas que gostaria que acontecessem no ano que estava por vir. Enquanto escrevia, lembrava-se dos desejos feitos há exato um ano atrás, muitos não realizados, e pensava nos motivos pelos quais isto não aconteceu. Pensando e pensando, concluiu que seus desejos deixaram de acontecer pela sua própria insegurança, seu medo de arriscar no novo, seu medo de errar.
            O lápis ficou suspenso no ar. De súbito, arrancou a folha do caderno onde estavam os desejos, embolou-a e lançou-a na lixeira. Resolveu fazer diferente: ao invés de enumerar as coisas que queria que acontecessem, enumeraria as coisas que não gostaria que acontecessem, melhor, tudo aquilo que achasse ruim em sua vida, aquilo que não gostava, maus sentimentos, más ações, receios, tudo.
           Animado com a ideia, o lápis começou a agitar-se em sua mão, querendo desenhar o papel. Ela pensou em algo que sempre fazia, mas que detestava: tinha medo das pessoas. Odiava a sensação de insegurança que determinadas pessoas lhe passavam e a maneira como se portava diante delas. Logo este seria o item que encabeçaria a sua lista. Mas, de repente, estacou. Passou pela sua mente que sem esta insegurança, sem esta relutância em tomar determinadas atitudes, poderia tornar-se uma pessoa desagradável e inconveniente. Então pôs isto nas linhas seguintes. Pronto: lá se foi a insegurança, mas ainda seria agradável e necessária.
          Suspendeu o lápis novamente: nem sempre ser desagradável é ruim. Existem situações em que é necessário uma resposta mais enfática para evitar atritos e mais aborrecimentos. Não, ela não queria ser semelhantes aos estúpidos, que acatavam a tudo sem protestar, sem expor suas opiniões. E, mais uma vez, o lápis voltara a riscar o papel, orgulhoso da tarefa que realizava. Incrível como as lembranças fluíam em sua mente, das atitudes cometidas contra a sua pessoa, o ódio que sentira e o receio de reagir, as brigas que tivera, o reflexo de sua frustração, diante da incapacidade de confrontar uma situação, vazando pelos seus olhos...  
          Estacou. Apesar de ruins, aquelas sensações bem ou mal lhe foram convenientes em determinados momentos. Se não brigasse por algo que desejava talvez jamais o teria; se não chorasse por um motivo qualquer, a mágoa nunca sairia do seu coração. Deixar de reagir a provocações já salvou muitas vidas, enquanto que a atitude contrária só fez perder.
         Pouco a pouco a borracha tomou o lugar do lápis, apagando as palavras do papel, até não haver nada mais escrito. Buscou no fundo de sua mente, mas não encontrou o que escrever, pois para cada palavra que pensava merecer estar na lista, havia uma justificativa para que ela não precisasse estar. Deitou o lápis no papel e ficou ali a admirar a folha em branco: nela continham todas as coisas que considerava ruins em sua vida. Percebeu então o quão importante são os pequenos tropeços que damos em nosso caminho e principalmente como amava seu próprio jeito de ser. Haviam poucas iguais a ela no mundo, mas não era melhor nem pior que ninguém: era simples, única e exclusivamente ela.
         O sorriso saiu furtivamente de seus lábios, iluminando seu rosto. "Que bom que está em branco", pensou. E erguendo-se da cadeira, foi até a lixeira de onde retirou um papel embolado, cujo conteúdo eram as coisas que desejava que acontecessem no ano que estava por vir.
          E pôs-se a escrever.


Para Jack