domingo, 10 de maio de 2015

Resenha # 2 – O Refúgio Do Príncipe.

Autor: Eva Ibbotson


Às vezes vivemos algo tão intensamente que carregamos aquilo para sempre. Pode ser um relacionamento, uma amizade, pode ser um filme que assistimos, um livro que lemos... ou simplesmente um lugar. Um lugar como outro qualquer, mas que para nós foi plenamente mágico.

Eva Ibbotson viveu isso quando era criança e o lugar nada mais era que um colégio interno. Não um colégio cheio de regras como a maioria dos internatos, mas uma escola progressista. Ela amou tanto este colégio e tudo que viveu ali que ele se tornou quase o personagem principal deste livro. Quase, por que as personagens principais são tão encantadoras e maravilhosas quanto esta escola deveria ter sido para a autora.

“O refúgio do príncipe” fala sobre a amizade e princípios. Um a garotinha de família humilde vai para uma escola interna, pois seu pai teme que a segunda guerra a atinja, e nos campos ela estaria segura. Lá, misturada a outras crianças tão diferentes e especiais entre si, a menina aprende a ser livre. Mas tem mais: o livro também conta a história de um jovem principezinho de um país fictício, Karil, que vive preso às convenções da monarquia. Filho único e sem mãe, ele sofre por não ser uma criança normal. Até que em uma feira escolar internacional realizada em seu país ele conhece Tali, a menina citada acima, e com ela e seus amigos travam uma amizade surreal. Mas aí a guerra eclode; Alemanha faz da Inglaterra sua inimiga e todos os países que dizem não à Hitler ficam em perigo, e isto inclui o pequeno país de Karil. Mas as crianças não entendem de guerra; entendem de amizade – e esta amizade supera todas as diferenças sociais e nacionais que o mundo adulto geralmente decide impor.

É um livro infanto-juvenil sim, mas nos deixa lições de liberdade que vale a pena serem analisados. Liberdade essa expressada no antagonismo entre uma modelo vivo que resolve dar aulas e cozinhar no colégio onde Tali vai estudar e uma atriz que esconde a filha para manter o sucesso e a juventude. As diferenças sociais e de caráter também estão marcadas na conduta entre o pai e o tio de Tali: ambos são médicos, porém o primeiro resolveu exercer a medicina em benefício da salvação do próximo, lhe rendendo horas extras de trabalho e condições medianas para prover a família, enquanto o segundo cobra fortunas de suas consultas e com isso adquire um padrão melhor de vida.  A narrativa é delicada, porém não deixa de pesar as mágoas de Karil e Tali quando suas dores são expostas. Ambientado no período da Segunda Guerra Mundial, flashes de como o a sociedade inglesa se comportou na época e como as crianças receberam essas mudanças é outro ponto forte da história.

Mas é inegável que a escola faz sua grande participação no contexto da história. Tanto que a autora reservou uma nota esclarecedora sobre ela logo no início do livro:

A história de O refúgio do príncipe é uma aventura imaginária. Mas o Colégio Delderton baseia-se numa escola para onde me mandaram há muitos anos e que me surpreendeu logo que cheguei lá, assim como surpreendeu Tali.
Quando cheguei, era uma menininha um bocado tímida e bem-comportada, de um convento de Viena, onde nasci. A primeira coisa que fiz foi uma reverência diante do diretor, que me recebeu no pátio do colégio – o que muito fez rir a crianças que observavam, a ponto de uma delas cair de uma árvore.
Logo me dei conta, no entanto, de que aquela era uma escola diferente de todas as outras. Aulas espantosas de biologia – que às vezes começavam às quatro da manhã - , uma cozinheira que havia sido modelo de artista, a cabana dos animais de estimação com sua coleção de bichos esquisitos – tudo isso fez parte de minha vida no colégio. Como Tali, eu achava difícil ser “livre” e “progressista” – no entanto, cedo incorporei aquele lugar estranho com o mesmo apreço que tivera pelo lar que perdi quando fugi de Viena -, o que não quer dizer que não fomos afetados pela guerra. Do telhado plano do ginásio do colégio. Minhas amigas e eu vimos Plymouth, a cerca de quarenta quilômetros de distância, incendiar-se


Um livro adorável, para crianças e adultos.


Cama Vazia

E quanta dor caberá dentro de você?
E como fazer para ela ir embora?


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Envolta de travesseiros, enquanto comia um chocolate, estava ela, ainda de pijamas, à escrever. Partículas do chocolate misturavam-se aos farelos de pão e biscoito, aos respingos de chá, café, leite e aos lenços de papel espalhados pela cama. Com uma obsessão adolescente, ela escrevia. Tinha plena consciência do Sol brilhando lá fora, pois sua luz teimava em atravessar as frestas da janela; porém, queria permanecer para sempre ali, quieta, em sua semiescuridão, escrevendo sobre sua dor e seus sonhos interrompidos.

A cama era grande, mas estava vazia. Ela e os travesseiros não conseguiam preencher a saudade angustiosa e indefinível que sentia. Poderia deitar-se em qualquer posição, ser a dona daquele espaço, espalhar-se e alongar-se; no entanto, teimava em posicionar-se à esquerda, como se esperasse que a vaga fosse milagrosamente preenchida.

Por várias vezes ela acreditou que seria; em todas elas se enganou. Eles partiram, levando consigo os sonhos que ela lhes impunha. Ao invés de amenizar-se, a dor da despedida fazia-se mais mortal a cada nova vez que ocorria. Porque precisava depender de outro ser para realizar seus desejos, queixava-se. Porque não poderia fazer sozinha, como tudo que conquistara na vida? No fundo ela sabia a resposta: o fardo era pesado demais. Natureza cruel.

Quando ela terminou de escrever e seu coração já se encontrava apaziguado, era tarde, a manhã há muito havia avançado. Ela queria que estivesse chovendo, que lá fora um vento frio e deprimente rodopiasse pelas casas, como reflexo de sua alma entristecida. Mas o Sol teimava em brilhar e penetrar insinuante pelas frestas. “Como o amor”, pensou.


E no fim, estava decidida: iria tentar outra vez.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

A nuvem que chovia histórias

N
o cume de uma montanha, a mais alta do mundo, vivia um homem tão velho quanto a própria humanidade e tão só quanto a própria solidão. Infeliz? Não, ele não se considerava assim, pelo contrário: sentia-se o homem mais feliz de todos, longe da maldade que dominava os homens, vivendo de sua horta e cultivando seu imenso jardim, onde possuía um exemplar de cada flor existente, trazida pelos seus melhores amigos, os pássaros, que também lhe informavam como ia o mundo além da montanha. Como considerá-lo um homem só, se contando com as plantas e com os animais ele possuía mais amigos que qualquer homem na face da Terra?

Este homem, tão logo acordava pela manhã, ocupava-se em cuidar de seu jardim, para que os pássaros viessem se alimentar do pólen de suas plantas. Enquanto o regava, tratava das plantas, revolvia a terra retirando ervas daninhas e contava histórias. Elas falavam de amor, de bondade, esperança e principalmente de Deus. Ah, como eram belas as histórias que ele contava sobre o povo e Deus e daqueles que Ele enviou para ensinar aos homens sobre o amor... Certamente ouvira as mesmas quando criança – ainda que não recordasse da própria infância! Ao anoitecer, com o crepúsculo resplandecendo no horizonte, chorava pelos homens, e antes de dormir, pedia a Deus que tivesse piedade deles.

A recompensa de tanta bondade e perseverança foi o surgimento de fadas em seu jardim. Como o desejo daquele homem era que houvesse paz no mundo, através delas este desejo era realizado. Os minúsculos serem oníricos ajudavam os homens de bem em suas realizações; sua intenção era mostrar à todos que as boas ações eram merecidamente recompensadas, pois permitiam a realização dos desejos mais íntimos de cada um.

Aconteceu que, numa manhã de inverno, época em que as plantas recolhem seus botões, uma roseira desobediente desabrochou, fazendo surgir uma linda rosa vermelha, e dentro dela, uma pequena fadinha. As outras fadas ficaram assombradas, pois nascimentos só são esperados na primavera, e não sabiam o que fazer com a pequenina. Frágil e ainda indefesa, ela não poderia acompanhá-las em suas missões pois viria a perecer; o mesmo aconteceria se permanecesse ali naquele frio. O que fariam então?

Por sorte o rubro da rosa em meio à neve chamou a atenção daquele velho homem, que foi verificar do que se tratava e ficou maravilhado com a rosa temporã. Achou-a mais que bela: um verdadeiro milagre dos céus de desafio e resistência, e resolveu levá-la para casa. Lá a colocou em um jarro de água e começou a cercá-la de cuidados. As outras fadas logo se alegraram, pois agora tinham a certeza de que sua irmãzinha ficaria bem.

Todos os invernos eram de solidão e muito trabalho para aquele homem: os pássaros, seus amigos, partiam em busca do verão, e as plantas que não resistiam ao frio exigiam um pouco mais de sua atenção para não perecerem. Passava todo o inverno rememorando histórias, colocando alguns pontos, reinventando-as ou simplesmente criando novas, para contar aos seus amigos quando estes voltassem. Mas naquele inverno ele não estava só, pois tinha sua rosa. E foi para ela que ele dedicou grande parte de sua atenção, contando-lhe histórias. Não sabia, porém, que dentro da rosa havia uma fada e esta se desenvolvia cada dia mais radiante pelas histórias que ele contava. 

E enfim chegou a primavera, e com ela novas flores no jardim, e principalmente mais fadas. O velho homem voltou alegremente ao seu ofício de cuidar de seus amigos e contar-lhe as histórias, como se a aventura invernal tivesse sido apenas mais uma delas. Logo, nenhum dos outros seres que habitavam aquele lugar estranhou quando o velho, um pouco pesaroso, levou a rosa, agora já com galhos, para seu jardim. Não podia deixá-la em casa pois não podia amá-la mais que às outras, então tratou de esquecê-la. Mas a fadinha que vivia dentro daquela rosa não o esqueceu, e esforçou-se mais que as outras para realizar o sonho dele.

Ah, quisera que os outros humanos fossem como aquele velho homem, que olhassem uns para os outros como ele olha para as flores em seu jardim: cada uma tem a sua beleza, mas são tratadas igualmente, não havendo mais belas, nem mais feias. O mesmo olhar que lança para as flores lança para as ervas: para aqueles olhos todas são iguais. Pudera também os seres humanos amassem tanto uns aos outros como ele os amava. Chorava à noite, pedindo à Deus que perdoasse aqueles que nada fazem para lutar por um mundo melhor. Às vezes pensava em voltar para o mundo além da montanha, em como gostaria de passar sua mensagem para eles, mas temia ser sufocado pela arrogância do povo; sentia que seria impossível. Só lhes restava rezar.

Foi pensando neste desejo que a fadinha teve uma ideia: fez um feitiço de maneira que cada história que o velho contava tornava-se vapor e ia se juntando lá no alto do céu, formando uma nuvem. Quando estava bem carregada, a nuvem se afastava e ia para as cidades. As pessoas logo se preparavam para um temporal, mas quando davam conta de si, sentiam sua imaginação fervilhar de histórias bonitas que logo eram contadas para outras pessoas, que contavam para outras, e contavam para outras... até que todos tinham conhecimento da história. E assim muitos mudavam o modo de ver o mundo – mesmo que outros não se importassem. E assim a nuvem seguia carregando e descarregando sempre...
Até que um dia, o velho partiu finalmente; já era chegada a sua hora. Deveria ser motivo de tristeza para os seres que ali habitavam mas foi de muita alegria pois todos sabiam que ele estava no céu, aos pés do Senhor. Somente a fadinha ficou triste: o que seria da sua nuvem de histórias? Era a única coisa que imortalizava aquele senhor que vivera tanto quanto qualquer mortal e permitiria que seu trabalho e suas orações tocassem os homens. Não haveriam mais histórias... Foi então que as outras fadas, percebendo seu pesar e conhecendo seus motivos tiveram uma ideia: transformariam toda boa história que saísse da boca dos humanos em nuvem para desabar em outros corações.

E assim aconteceu. Por muitos anos a nuvem carregava e descarregava milhares de histórias no coração dos homens, e mudavam suas atitudes, seu jeito de pensar. No entanto, é uma pena que a maldade dominava muitas mentes, impedindo-os de viver as maravilhas da nuvem que chovia histórias. Ela acabou tornando-se uma névoa, uma bruma, e são poucos os que a sentem e absorvem seu encanto, como eu.

Ah, como seria bom se todos pudessem ver, sentir, se envolver e trazer de volta a nuvem que chove histórias! Uma pena que o sonho do velho homem ainda esteja bem longe de se tornar realidade...!