Parte IV - Casinha
Massacraram
a Memê. Durante dias, fosse em casa, na escola ou na rua, todo mundo parecia
estar unido para ofendê-la das piores formas possíveis e justificar os
empurrões e puxões de cabelo por ela recebidos. Homens barbados diziam que lhe
fariam coisas para que ela aprendesse a ser mulher. Tudo porque a viram
beijando outra garota e a notícia correu como rastilho de pólvora. A namorada
dela foi convidada a sair da escola, era maior de idade. Segundo a diretoria,
seria uma má influência para as outras meninas – claro, os rapazes que
agarravam as garotas na saída dos banheiros não eram más influências, muito
menos os casais que se esfregavam pelos cantos da escola. Muitos daqueles que
jogaram com ela, que a conheciam, viraram-lhe as costas, ou se uniram ao coro
de ofensores. Poucos se absteram. E Memê aguentou tudo sozinha, em um silêncio
e uma apatia impressionantes.
–
Parem com isso seus abutres! – gritei certa tarde, durante o intervalo, quando
alguém a derrubou. Enquanto ela catava as folhas que se espalharam, uma turba
uniu-se para ofendê-la. – Não acham que já chega? – continuei – Não implicaram
o bastante? Quem são vocês para julgá-la? Tem caras aqui que fazem pior com as
meninas e pagam de garanhões! E vocês do time de futebol, estão querendo
descontar os banhos que ela deu em vocês nos jogos? É isso: uma vingança porque
uma menina é melhor do que vocês, e porque ela tem coragem de ser quem é?
–
Ah olha só, a outra namorada está defendendo!! – gritou alguém.
E
antes que eu pudesse responder Memê interveio...
...Contra
mim!
–
Saia daqui Brisa.
–
O que?
–
Eu disse SAIA DAQUI!
–
M-mas... Eu estou defendendo você!
– E EU NÃO PRECISO QUE VOCÊ ME DEFENDA!!
Virou
as costas e saiu. Eu fiquei lá, parada, com a escola inteira rindo de mim, mas
como eu não era interessante, eles se dispersaram. Pensei em seguir a Memê e
lhe dizer umas poucas e boas, mas o Binho me segurou e me tirou dali.
Passei
o segundo tempo remoendo a humilhação sofrida por causa daquela garota ingrata.
Naquele mesmo dia meus socos se espalharam pelos corredores do condomínio,
dirigidos para a porta do apartamento de Memê. E meus palavrões também!
–
MELISSA !! Sua @#$%! Eu sei que você está aí, abre logo a &¨%$* desta porta
sua vagabunda de quinta categoria! EU QUERO FALAR COM VOCÊ AGORA!!
Memê
abriu a porta com o rosto tão furioso que eu engoli os desaforos que saíam da
minha boca. Ela me segurou nos ombros com força perguntando o que eu queria com
aquele escândalo todo.
–
Eu estava te defendendo pô! Precisava
ser grosseira comigo? Eu sou sua amiga... – falei, a última frase num fio de
voz
–
Eu sei Brisa...
–
Então porquê...?
–
Porque EU suporto isso Brisa, EU sempre suportei. Eu sempre fui a diferente,
não viu? Então, eu consigo superar isso sozinha. Mas você não, – e tão logo me
viu com cara de espanto disparou – Ou você acha que dá conta de todos os
insultos que me dizem todos os dias, vindo de pessoas que sequer me conhecem?
Você, a menina que chorou quando as coleguinhas a rejeitaram porque não tinha
uma Barbie?
Eu
abri a boca para falar, mas no fundo ela tinha razão: eu não tinha metade do
suporte emocional que Memê possuía – me senti super mal naqueles dias em que
também fui vítima de comentários da escola, chorando escondida no banheiro e
evitando a todo custo cruzar com as garotas do condomínio e seus dedos
acusadores. E apesar de todo perrengue que estava passando, Memê ainda
encontrava tempo para zelar por mim.
–
Desculpa pegar pesado, Bri, mas você me entende, não é?
Fiz
que sim com a cabeça.
–
Beleza parceira! Agora vai pra casa. Seu pai proibiu a gente de se ver e eu não
quero mais problemas para D. Dora.
–
Mas e você? A Keila saiu da escola...
–
Eu soube... – Memê olhava para o nada, apertando os lábios para segurar a
emoção. Seus olhos brilhavam e eu via que ela sofria. Mas como era dura aquela
menina!
–
A gente vai dar um jeito de ficar junto – disse por fim.
Jeito?
Como assim? Só se fosse fugindo!
Dito
e feito, Memê fugiu na calada da noite. Eu estava de tocaia e então a segui,
mas sempre fui péssima em perseguições e ela logo me descobriu. Depois da
bronca e de provar por “a mais b” que eu não conseguiria voltar sozinha,
deixou-me acompanhá-la. Iria encontrar a Keila em algum ponto da linha do trem.
Seria romântico se não fosse trágico: naquela época nenhum lugar as aceitaria,
estariam sempre a margem da sociedade – uma sociedade mesquinha, cruel e
hipócrita.
Alguém
sacudiu um pano branco assim que fizemos a curva. Ela correu naquela direção e
eu fui atrás, trotando de sono. Quando as alcancei trocavam carícias através da
cerca de tela. Ao me ver, Keila se afastou, irritada.
–
O que ela faz aqui?
–
Ela me seguiu, não podia deixá-la ir embora e se perder.
–
Ah vem com essa! – bradou Keila, afastando-se mais ainda da grade.
–
É verdade!! Brisa conta pra ela!
–
Eu não tenho nada com a Memê. Somos vizinhas, ela é minha amiga e eu estava
preocupada...
Mesmo
hesitante, a Keila aceitou. Só então me dei conta que aqueles boatos antes do
flagra prejudicaram mais o seu relacionamento do que a mim. Memê me deu um
abraço e em seguida começou a escalar as grades. Foi quando um alarme tocou.
–
Brisa, se esconde! – ordenou. Mas começamos a ouvir vozes e luzes vindas de
algum lugar da linha do trem.
–
Eu não posso ser pega com você! – berrou Keila, do outro lado, fugindo.
–
Não!!
O
grito sufocado de Memê partiu meu coração. Ela tentava alcançar o alto da cerca
e seguir a sua namorada, que já ia longe, mas faltava um bocado. Seu
autocontrole e sua apatia foram para o espaço quando ela começou a gritar para
que Keila voltasse.
E,
claro, denunciou onde estávamos.
Com
medo de que ela despencasse dali eu não me escondi. Mas Memê não caiu, ficou
pendurada nas grades chorando e olhando na direção em que a outra se fora. Os
guardas não conseguiram tirá-la de lá e temiam que ela se jogasse. Amanheceu e
logo as pessoas começaram a se juntar; alguns, trabalhadores, outros, curiosos
que sabiam quem era ela: a menina que gostava de meninas.
Então
ele chegou e gritou seu nome do meio da multidão, que já se irritava com o
atraso na saída do trem. Só assim ela resolveu descer. Braços fortes a agarraram
e a arrancaram da cerca; ela se debatia com força, mas no fundo sabia que
estava derrotada. As mesmas mãos que a arrancaram depois a afagaram, enrolando
seu corpo feito uma bola, embalando-a como se fosse um bebê. Era seu pai. Ele
tinha a aparência de um urso, com sua barba castanha e um espesso cabelo
cacheado, mas também a delicadeza de uma mãe. Aquele foi o único momento de
toda nossa amizade que eu tive uma baita inveja da Memê! E também a primeira
vez que a vi única e simplesmente como uma menina.
–
Porquê papai? Porquê...?
E
enquanto ele sussurrava os porquês em seus ouvidos, Memê se acalmava,
diminuindo os soluços. Ninguém ousou se aproximar deles quando se levantaram –
na verdade ninguém queria ser fuzilado pelo pai da Memê, que mirava os
presentes como se fosse arrancar o fígado de cada um que ousasse pensar mal de
sua filhinha! Murmurava para ela palavras de conforto enquanto seguiam para o
carro. Depois das portas batidas, os pneus cantaram. A multidão se dispersou e
eu fiquei sem saber como ir para casa.