quinta-feira, 4 de julho de 2019

Arquimagos - Explorando Labornok

Fanfic baseada na obra "A senhora do Trílio" de Marion Zimmer Bradley, por sua vez parte integrante da série Trílio, onde participaram também as autoras Julia May e Andre Norton.

Capitulo XV - Doente

A recuperação de Mikayla não foi lenta, apesar de levar dois dias inteiros até que ela despertasse de vez. Delirou algumas vezes, atacada por pesadelos. Em um deles, uma loba corria desesperadamente pela floresta, perseguida por seres que não eram nyssomus, pareciam metade homens metade cães. Em outro, mulheres cozinhavam crânios humanos em um caldeirão fervente. A garota acordava aos gritos, prontamente acalmada por Fiolon.
­
–“A terra está sofrendo de novo Fio, e eu não sei por onde começar a ajudar”
–“Encontraremos um jeito, vamos restabelecer a paz em Labornork” – ele a acalentava.

Fiolon fez o melhor que podia com as ervas que tinha à sua disposição, mas era ela quem dominava melhor a arte da cura. E não pôde deixar de rir dos pequenos erros que ele cometeu em suas tentativas:
– Deveria ter macerado as folhas do sandogueiro ao invés de simplesmente aquecê-las ao fogo: potencializaria mais o processo de cura. – Ela o orientou. Os hematomas melhoraram a aparência, porém ela ainda sentia dores internas e nada poderia ser feito quanto a isto. Fiolon cogitou retornarem para a torre branca, mas Mikayla recusou-se prontamente: deveriam continuar a exploração até os mares do norte.
Somente na manhã do quarto dia Mikayla despertou mais descansada e revitalizada. As dores eram menos incômodas e ela se permitiu um alongamento leve. Fiolon despertou poucos minutos depois e sentiu-se aliviado por vê-la movimentar-se.
– Sabe, agradeço aos Senhores do Ar por você vestir-se mais como amazona do que como princesa!
Mikayla não gostou muito do comentário. Era verdade que habituada à exploração desde criança, ela acostumou-se a vestir calças em quase todas as ocasiões, exceto quando em algum evento real. Porém, seguindo o raciocínio do arquimago, vestidos bufantes ou de qualquer espécie teriam facilitado o serviço de seus captores quando tentaram lhe fazer mal. Esta “lógica” foi o que incomodou seus pensamentos; afinal que lugar é este que uma mulher precisa cuidar de suas vestes para evitar ser atacada? “Quem faz isso sequer pode ser considerado humano ou humanoide!” pensou consigo. Tinha todo o dorso enfaixado com as tiras de sua blusa, rasgada por Fiolon para fazer os curativos: ele lhe oferecera a própria blusa para quando retomassem a jornada; sua frustração com o comentário do marido, porém, a fizera cogitar a possibilidade de prosseguir sem ela.
Caminharam seguindo o leito do rio a passos lentos. Comiam o que a terra oferecia e do próprio rio saciavam a sede e aliviavam suas necessidades. Mikayla estava mais forte, mas percebia Fiolon fraquejar de vez em quando.
– Está sentindo alguma coisa Fio?
– Estou bem.
Mikayla reparou que a pele dele brilhava de suor e não era da caminhada. Aproximou-se e pôs a mão em seu rosto. Fiolon tentou se desvencilhar, mas ela foi mais rápida.
– Você está ardendo em febre!! – disse horrorizada – desde quando está assim?
– Começou esta manhã. Acho que posso aguentar até a próxima aldeia
– Mas que coisa, Fiolon porque não me avisou? Não podemos prosseguir com você neste estado!
– É só um mal estar repentino Mika, vou melhorar.
Mikayla analisou-o de cima abaixo até que finalmente percebeu o rasgo em sua perna, provocado pelo corte com a faca.
– Deixe-me ver isto! – ordenou. Fiolon hesitou antes de mostrar o ferimento. Estava inflamado e purulento. – Céus, você passou estes dias cuidando de mim e esqueceu de si próprio? 
– “De nada” por isto – ele resmungou, aborrecido.
Mikayla tentou apaziguar.
– É claro que estou agradecida Fio, mas isto nos coloca no mesmo problema de antes, de não podermos prosseguir. Com certeza isto está infeccionado e não há recursos conhecidos por aqui para limpar seu sangue, não conheço a botânica de Labornok.
– Mais uma coisa para colocarmos na lista de aprendizados!
– Você realmente está tentando ser engraçado? Vamos, precisamos encontrar uma clareira. Vou chamar um abutre para nos levar para casa...
Fiolon queria ir para casa. Queria a sopa quente de Enya e seus cobertores. Estava cansado e sabia que cometera um erro ao tentar sucessivos feitiços de cicatrização sem analisar a profundidade do ferimento, focado em cuidar de Mikayla. Mas seu instinto lhe dizia que aquela terra precisava de ajuda, e eles não podiam recuar.
– Espere! Porque não vamos para Derorguila? O abutre pode nos deixar próximos à cidade; lá terei condições de me tratar e você pode continuar a pesquisa.
– Tem certeza?
– Sim. Esta terra tem problemas; não sabemos o que é, mas precisamos salvá-la.

***

Anoitecia quando Olho Vermelho deixou-os no limite da capital, numa área em que o pouso de um animal como ele não causaria tumulto entre os habitantes; séculos antes, voors transitavam livres pelos céus, mas os conflito entre as terras fez com que os povos das montanhas se isolassem, e com isso os animais da região - isso também era outro sinal do descaso da arquimaga Haramis. Olho vermelho tinha uma repulsa pessoal por aquela área, mas como era o único abutre que poderia viajar à noite, atendeu à solicitação dos Arquimagos.
– Meus algozes, os que me queriam escravo, viviam deste lado. Ainda sinto arrepios. – justificou-se ele, antes de partir.
Tão logo o animal alçou voo, os arquimagos puseram se a caminhar. Mal se deslocaram e um barulho chamou sua atenção: passos na floresta vinham apressadamente em sua direção. Os arquimagos se prepararam para um ataque, que se revelou em forma de um encontrão derrubando Fiolon, que instintivamente agarrou seu possível atacante.
– Não, me solte, me largue!  – esganiçou uma voz feminina. Surpreso – e dolorido, já que a queda avivou sua ferida – Fiolon a soltou. Quando a jovem tentou fugir, Mikayla a prendeu com magia.
– Por que nos seguia? – perguntou a arquimaga. 
– Eu não os segui, quero distância de vocês...
– Então porquê nos atacou?
– Por favor, ... não me levem de volta  – disse a jovem, chorosa e derrotada. Ela parecia cansada e os arquimagos concluíram que poderia estar havendo um mal entendido.
– Não vamos levá-la a lugar algum, mas podemos ajudar se nos disser o que esta havendo. – disse Fiolon
A jovem pareceu prender a atenção em Fiolon antes de responder; se Mikayla tinha a visão de um caçador noturno, aquela teria garota também?
– Eu pensei que fossem eles, mas vocês... Vocês não são eles! Seu cheiro é diferente... – aspirou profundamente – Você – sim ela via Fiolon no escuro – cheira a sangue. Eles irão caçá-lo. Saia da floresta e não volte. A primavera está acabando...
– De quem você está falando garota? Quem são eles?  - bradou Mikayla, perdendo a paciência.
Um rosnado alto assustou-os e na distração, a garota fugiu.

“Aquilo foi ela?” – perguntaram-se, passado o susto.
– Poderia ao menos nos dizer qual o caminho mais rápido para sair daqui. – brincou Fiolon, antes de desmaiar.



segunda-feira, 28 de maio de 2018

Escrava do Cabelo

Nem sempre é o que parece...

Ela havia deixado a porta aberta quando fora se pentear. Sempre se levantava mais cedo para tudo, desde quando eram namorados. Os primeiros três meses de casamento passaram como uma brisa, tamanhas eram as alegrias e as novidades. Os três meses seguintes foram de rotina estabelecida, reconhecimento de hábitos, acordos nos cuidados da casa – ambos trabalhavam fora, logo as tarefas precisavam ser divididas. Mas se ele achou que acordaria com ela em seus braços, estava enganado: no meio da noite, ou pouco antes do amanhecer ela lhe fugia.

Ela sempre estava na TV, ou na cozinha, adiantando ou já bebericando o café. Nunca maquiada, mas sempre penteada. Os cachos brilhavam pelo excesso de cremes ou encontravam-se presos em um coque elaborado. Ela não parecia desperta, mas também não parecia que voltaria a dormir. Voltar para cama para “algo mais” nem pensar! Ela odiava os travesseiros molhados e os cabelos recém lavados já davam a ele a resposta: “não vem não!”

O cabelo. A culpa, ele descobrira depois, era do maldito cabelo. Cheio, livre e descontrolado como ela, era uma coisa desengonçada todas as manhãs. Mas ela não queria que ele visse e preparava-se antes de chamá-lo para acordar ou até mesmo durante a madrugada. “Será que nunca dormia plenamente?” ele se perguntou algumas vezes, sem ter resposta, pois não tinha coragem de direcionar a pergunta para quem de direito. Seu sono pesado não ajudava, tentou por vezes surpreendê-la, mas quando acordava já havia perdido o momento.

Um dia, ele farto desta coisa, de acordar sem ter mulher ao lado, prendeu-a entre os lençóis. Nas tentativas de sair da cama ela acabou acordando-o. Ele, desperto e esperto, fingiu que ainda dormia, mas deixou-a livre. Ela foi para o banheiro, e com a porta aberta ele viu o que não deveria ser visto.

Ela não era escrava do cabelo, como ele supunha que fosse.

Ela não tinha cabelo. 


terça-feira, 1 de maio de 2018

Retratos na Caixa de Leite

Idéias vêm e vão. Desenvolvê-las nem sempre é fácil e muitas das vezes elas se perdem no caminho.
Este é o argumento ou sinopse de uma história que talvez seja escrita um dia. 





Anna, uma premiada repórter de 30 e poucos anos é mãe adotiva de um adolescente chamado Joaquim de 13 anos e esposa de Juliano, um típico delegado de polícia quarentão da cidade de São Paulo, com modos um tanto machistas - ele preferia que a mulher ficasse em casa cuidando do filho, muito amado por ambos. Ela fica intrigada com a morte de Tony Cabral, policial colega de Juliano que havia entrado na corporação há menos de dois anos mas que morreu de overdose dias depois de ser transferido para uma cidade do interior. O que incomoda Anna é o fato de que tempos atrás Tony tinha se tornado uma celebridade em outra cidade por ter ajudado a unir mães e seus filhos desaparecidos através da confecção de retratos que uniam fotos das crianças desaparecidas com as fotos dos pais quando tinham a idade que a criança teria naquele momento. Anna, inclusive, fizera a  matéria sobre o assunto, o que lhe rendera diversas premiações.

 Sentindo que havia "algo mais" nesta história, Ana e sua parceira Elizabeth, uma estagiária de vinte e poucos anos começam a investigar sigilosamente as atividades de Tony, uma vez que Juliano é estranhamente contra o envolvimento dela com o caso. Em certa altura das investigações, elas conversam com as mulheres que procuraram pelos serviços de Tony ao longo dos anos e percebem que muitas tinham em comum o fato de terem sido ex-detentas de um mesmo presídio. As desconfianças aumentam quando algumas dessas mulheres são assassinadas. Investigando, a dupla descobre uma quadrilha que sequestrava crianças filhos de presidiárias, acobertada pelos agentes e policiais locais que recebiam suborno para deixar a quadrilha atuar naquela época. Atrás da cabeça da quadrilha, Elizabeth descobre sem querer que Juliano também fizera parte do esquema, e que Joaquim pode ser uma das crianças sequestradas; muito abalada, deixa a cargo de Ana decidir o que fazer. 


Ana mata Elizabeth e revela-se a responsável por todas as mortes até então. Ela desaparece no mundo com seu filho, não sem antes montar uma matéria-denúncia acusando a corporação - inclusive o marido - e enviando uma carta à mãe biológica do menino pedindo desculpas pelo ocorrido, mas que não era forte o suficiente para dividir a criança.




quarta-feira, 4 de abril de 2018

Bombyx Mori Tupiniquim¹




       Naquele reino de personagens estranhos, “uma prostituta chamada Brasil se esqueceu de tomar a pílula e a barriga cresceu”.² Ela era uma vaca, de lindos cabelos verdes, onde toda fauna e toda flora se abrigava; seus olhos eram de um azul infinito, cristalino como as águas e como o céu. E de suas centenas de tetas escorriam leite e mel, que também saciava a fome de Povus, a quem ela servia.

       O problema era seu cafetão. Politicvs era um ser ardiloso, mesquinho e cruel. Ficou furioso quando Brasil engravidou, mas percebeu que, com sua gravidez, as tetas produziam mais. Brasil não quis se livrar dos próprios filhos e garantiu a Politicvs que eles iriam ajudá-la a cuidar de Povus. Sob esta promessa nasceram os trigêmeos Saúde, Educação e Cultura e com o leite da mãe cresciam bem. Até que Politicvs passou a exigir mais da sua parte, mas ficaria feio para ele reclamar na frente de Povus: então, na calada da noite, enquanto todos dormiam, drenava o leite de Brasil e este começou a faltar. Povus indignou-se com a falta de leite e Politicvs espalhou para quem quisesse ouvir que Brasil não estava cumprindo com seus deveres porque Povus não lhe dava as devidas recompensas.  Mas Brasil se esforçava em atender Povus, e os filhos dela a ajudavam, como prometido. E com Saúde, Educação e Cultura, Povus começou a se questionar sobre a real necessidade de ter Políticvs intermediando sua relação com Brasil. Assim, prevendo que deixaria literalmente de mamar nas tetas de Brasil, Políticvs lançou-se em um plano arriscado: sempre na calada da noite, tirou também o leite dos filhos de Brasil. Saúde e Educação foram os primeiros a definhar, enquanto Cultura resistia bravamente. Brasil continuava reservando igualmente suas parcelas de leite para seus filhos, que se revertia em prestação de serviços para Povus, mas enfraquecidos, o serviço das crianças era cada vez mais mal feito. Povus novamente procurou saber o que estava acontecendo e Politicvs prontamente respondeu: “Você não está recompensando Brasil suficiente, logo, falta leite para as crianças!”. “Mas cultura está bem!”, argumentou Povus, “É claro: é ele quem tira o leite dos outros irmãos! De quem você precisa mais? Vamos tirar o leite de Cultura e assim sobrará mais para os outros dois!”.

       O plano deu certo: Brasil continuava a distribuir igualmente o leite entre seus filhos, mas na calada da noite Politicvs tomava uma parte de Cultura para si e distribuía o restante para os outros dois irmãos. A melhora deles foi considerável, mas não suficiente. “Você precisa pagar mais pelos serviços de Brasil! Só assim vai melhorar! Esta mãe ingrata está deixando de produzir e a culpa é sua: pague mais! Pague mais!”, gritou Politicvs aos quatro cantos. Povus triplicou sua contribuição pelos serviços de Brasil, ela era tributado de todas as formas possíveis e inimagináveis – chegando a pagar para ter que trabalhar! Mas Brasil nunca via o retorno deste dinheiro: tudo era guardado nos bolsos, nas malas, nas calças e nas cuecas de Políticvs. O leite estava acabando. Saúde e Educação definhando, seu irmão mais velho, Cultura, há muito morrera de fome. Povus também enfraqueceu, não conseguia pensar. Só sabia esbravejar e brigar por coisas idiotas; não tinha forças para mais nada, convencido de que a culpa era de Brasil, aquela vaca ingrata que não servia para nada e daqueles que pensavam diferente dele.

       Vendo que a vaca ia para o brejo, Politicvs arrumou suas malas e foi para um paraíso fiscal qualquer, não sem antes deixar seus filhos de olho nela: enquanto a vaca desse uma gota de leite, ele queria a sua parte.
     
       E Povus, sem Saúde, Educação e Cultura, só sabia gritar: “Pátria que me Pariu!”³



¹Bombyx Mori é o nome cientifico do Bicho da Seda, que por sua vez é o título do segundo livro que J.K. Rowling escreveu sob o pseudônimo de Robert Galbraith. Nele, um detetive investiga a morte de um autor cujo livro (Bombyx Mori) retrata, de maneira pouco ortodoxa e cheia de analogias, várias personagens de sua vida real.
² e ³: Versos da música “Pátria que me pariu” de Gabriel, o Pensador.

O bom filho...

Sim, depois de um longa pausa estamos de volta!

O sumiço tem um bom motivo: a divulgação do livro Contos da Dona Noite, muito bem recebido nos saraus da região. Isso não diminuiu o prazer da escrita, mas privou o blog da publicação de muitos contos e a continuação da fanfic Arquimagos. Peço um milhão de desculpas por isto.

Mas quero dizer que esse tempo foi proveitoso para muitas narrativas que serão publicadas por aqui.
Vou abrir o leque para compartilhar materiais que tenho encontrado nas redes e de novos autores que encontro aqui e acolá. Também vou compartilhar com vocês os materiais que produzi como roteiros de curta metragens, e muitas storylines que vocês poderão se inspirar para criar as histórias de vocês - exatamente: talvez a sua ideia para uma história seja um milhão de vezes melhor do que a minha, e eu quero lê-la! Ficarei muito feliz em saber que contribuí para mais um maravilhoso trabalho literário ou artístico por aí...

Então vamos juntos?

Porque é muito bom ter você por aqui!

P.B. Caprice

sábado, 16 de dezembro de 2017

Arquimagos - Explorando Labornok

Fanfic baseada na obra "A senhora do Trílio" de Marion Zimmer Bradley, por sua vez parte integrante da série Trílio, onde participaram também as autoras Julia May e Andre Norton.

Capitulo XIV - Ataque

Uma mão silenciou o grito da arquimaga. Ela curvou-se sobre aqueles braços e chorou a morte da mulher e das duas jovens. Estava em choque, e por isso abraçou-se àquele corpo em busca de consolo. Só então notou que era um corpo estranho, com pelos demais e um cheiro desconhecido. Abriu os olhos: quatro pares de olhos desconhecidos a miravam, curiosos e ameaçadores. Ela tentou desvencilhar-se dos braços e gritar por Fiolon, mas uma mordaça foi colocada em sua boca e uma pancada a deixou desorientada. “ O truque de D. Angélica deu muito errado!”, pensou, enquanto seus captores arrastavam seu corpo para a parte externa da casa. Foi a visão de Fiolon com o rosto machucado e tendo as mãos atadas que a tirou do torpor.

– Não... não! Porque estão fazendo isso??
Aquele que a segurava apenas riu.
– É macho! – entendeu alguém dizer.  ­– Vamos levar?
– Sim, jogue na carroça... Mas esta aqui não serve. Alguém quer?

Mikayla não precisou pensar muito no que aquelas palavras significavam. Logo um daqueles seres – o bando parecia ser uma mistura de odlings e humanos quase não identificáveis – debruçou-se sobre ela rindo.

– Tire suas mãos dela! – o grito ecoou pelo ar. Os seres estacaram procurando de onde vinha aquela ameaça.

Fiolon não é um guerreiro. Desde cedo foi, na medida do possível, treinado para ser um nobre. Sua ambição de futuro quando criança era ser músico, então se dedicou com afinco a isto, negligenciando as aulas de combate. Mas o destino quis que ele se tornasse um arquimago, e a partir daí precisou dedicar-se ao estudo da magia. Assim, amarrado como estava – e mesmo se não estivesse, não arriscaria uma luta corpo-a-corpo – sua única alternativa para sair daquela encrenca era apelar para a magia. O truque era simples: tornou-se invisível e deslocou sua voz para diversos locais a fim de assustar seus captores. Paus e pedras começaram a voar acertando o bando e afugentando alguns. Mikayla conseguiu se desvencilhar daquele que a segurava, correu e montou o fronial que conduzia a carroça para fugir.

– Por Meret, é um maldito truque! – gritaram atrás dela. Flechas voaram em sua direção e acertaram o fronial, que caiu, derrubando-a. Só então ela se deu conta que pegara a carroça errada: Fiolon ainda estava nas mãos de um dos bandidos, agora com a perna ferida. Alguém desconfiara do engodo e o esfaqueou e a perda de sangue desfez o feitiço.
– Acha que não conhecemos magia garoto? Nos acha tão inferiores assim? – gritou o bandido na cara de Fiolon. As pernas de Mikayla doíam por causa do tombo, mas quando conseguiu se concentrar para usar alguma magia, foi novamente imobilizada.

– Se você não fosse tão valioso, rapazinho, tiraria sua vida agora mesmo, só pelo seu abuso. Mas existem outras maneiras de te fazer sofrer. ACABEM COM ELA!

Aqueles que estavam perto de Mikayla desferiram-lhe golpes violentos. Fiolon gritou, mas seu grito foi abafado pela mordaça. As veias em sua garganta saltaram e seus olhos se arregalaram, mas estava incapaz de fazer qualquer coisa. A ira tomou conta de seu corpo, e ele só tinha olhos para o que estava acontecendo com Mikayla. E Mikayla também só tinha olhos para ele.

Foi então que tudo mudou: quando os olhares dos arquimagos se encontraram, ambos alheios à própria dor, mas totalmente cientes da dor do outro, o ódio contra aqueles malfeitores e a vontade de destruí-los dominou suas mentes. Na mata, os animais se assustaram com o o forte vendaval que surgiu repentinamente. Aquele que atacara Fiolon engoliu a gargalhada: esperava ser um novo truque, só que ao olhar para o rapaz não via mais um rapaz: via um ser de cabelos brancos e olhos sem íris. Aqueles que estavam com Mikayla se afastaram, pois ela também era um ser diferente, de olhos e cabelos completamente brancos. Também havia fúria em sua expressão.

Algo no céu brilhou e atraiu a atenção dos captores. Três círculos se formarem e se alongaram até se parecerem uma flor. Era um trílio. Um trílio dourado.

– Mas o que significa isto? – quis saber alguém. Como resposta um jato de luz acertou em cheio o seu coração e os dos demais. Em uma fração de segundos, todos os captores foram dizimados.

***


Quando despertou do transe, Fiolon se viu boiando num rio, agarrado a um tronco de árvore, com uma Mikayla desacordada em cima. A garota estava com a blusa rasgada, sendo possível ver os hematomas causados pelo espancamento. Como a correnteza estava amena, ele conseguiu alcançar a margem e tirá-los da água.

– Mika... Minha princesa, por favor, acorde! Fale comigo sim? – tentou despertá-la. A pele dela estava gelada por causa da água e como não havia algo seco para vesti-la, sentou-se com ela ao sol, retirando-lhe a blusa e as botas – ele hesitou em tirar suas calças. Também retirou a própria blusa e envolveu a garota em seu colo como uma bola, soprando-lhe as mãos e esfregando-lhe os pés, apesar do corte em sua própria perna dificultar um pouco as coisas. – Minha querida fale comigo, por favor! Meu amor, eu te proíbo de morrer e me deixar sozinho cuidando das duas terras!
– E fazer de você o viúvo mais cobiçado de Var?  Nem pensar! – gemeu Mikayla, e Fiolon respirou aliviado – Mas eu estou gostando de te ouvir me chamar de “minha princesa”, “minha querida”,”meu amor”...
– Sua bruxinha! – ele fingiu zangar-se, mas estava feliz: beijou repetidamente seu rosto e apertou-a ainda mais em um abraço, só se dando conta que isto a machucava quando ela gemeu de dor. Ele afrouxou o abraço e ficaram assim parados por um tempo até Mikayla adormecer novamente e ele, ao perceber que a temperatura dela estava equilibrada, tratou de levá-los para um local mais seguro. Achou prudente fazer uma pequena fogueira, ainda que tivessem que apagá-la quando escurecesse para não chamar a atenção no meio da noite, mas até lá o calor secaria suas roupas. A capa, de material semi-impermeável, secara enquanto ficou estendida ao sol. Ele a usou para envolver Mikayla e deitou-se ao lado dela.

– “Fomos nós?”

A pergunta invadiu a mente do rapaz, trazendo-o de volta do limiar do sono. O céu já estava  escuro; ele debruçou-se sobre a jovem e pode ver o brilho da fogueira, já fraca, refletido nos olhos dela. Estava acordada.

– “Fomos nós lá em cima, no moinho?”
–“Não sei Mika” – ele afagou-lhe a cabeça – “Não fomos treinados para usar nossos poderes ferindo os outros, ainda que saibamos que isto é possível. Mas eu acho... eu acho... que sim!”

Mikayla começou a chorar baixinho, e ele pode sentir a sua dor. Violência nunca fora o forte dos dois.

– Eu jamais permitirei que alguém lhe faça mal – sussurrou ele.
– Mas aquilo... aquilo! – Mikayla gemia nervosamente, lembrando todo o horror que vivera algumas horas atrás. Por mais que tivessem que pagar pelo que haviam feito à D. Angélica, não achava justo que alguém devesse morrer com o corpo explodindo em mil pedaços.
– Shhii, eu sei...eu sei! Mas eu não consegui pensar em outra coisa quando vi o que eles iam fazer com você.

E sim, ele sabia. Podia ver nas memórias dela o que ambos sofreram e o momento da transformação. Suas próprias imagens tornaram-se tão ameaçadoras em suas lembranças que ambos tremeram: cabelos e íris brancas somadas à expressão de cólera os levaram ao horror, mas não tanto quanto a chacina em si. O trílio no céu, símbolo de Ruwenda, não deixava dúvidas que aquilo fora obra deles. Depois do extermínio, a queda, provocada pela explosão dos círculos, cujo impacto destruiu a parte do barranco em que estavam, jogando-os no rio.

– “Eu não sei o que eu fiz!”
– “Nem eu Mika. Mas aquilo não foi natural, e não podemos ignorar os fatos:”

“Desejamos uma coisa. E ela aconteceu”



domingo, 12 de novembro de 2017

Arquimagos - Explorando Labornok

Capitulo XIII - Pesadelos

             Havia mulheres gritando. E crianças também. Bebês. O fogo que parecia lamber as paredes era apenas uma série de fogueiras acesas para iluminar o lugar. Uma tenda? Uma caverna? Não dava para saber. As mulheres gritavam cadenciadamente, percebeu. Era um coro: havia dor, mas também preocupação. Partos coletivos. Os curandeiros estavam vestidos de negro, com máscaras. Porque não podiam deixar ver seus rostos? Um par também vestido de preto e mascarado acompanhava tudo a certa distância. Os recém-nascidos eram levados até eles. Uma espécie de seleção? Uns para esquerda, outros seguiam a direita, mas outros eram levados para outro lugar. A visão seguiu o curandeiro que levou um dos recém-nascidos. Havia urgência em carregá-lo para longe. Uma carroça esperava, outras crianças gemiam em cestas cobertas de tecido e palha.
                Não.                Crianças não!

                Mikayla acordou sobressaltada, assustando Fiolon, que derrubou o vidro de tinta sobre as próprias anotações.
                – “Acho que tive um sonho ruim”
                – “Percebi. Mas tem certeza de que fora sonho?”
            – “Não sei... Acho que foi influencia do assunto de antes de dormir. Sonhei que mulheres estavam parindo e dentre as crianças normais havia... monstros”
                 Fiolon suspirou.
                – “Pode ter sido culpa minha. Estava lendo justamente sobre como os desapare-cidos criaram novas espécies. Eles usaram todo o tipo de fêmea, inclusive humanas”
                – “Cruzes!” – pensou Mikayla, mas uma recordação longínqua lhe veio à mente: mais  alguém já lhe falara sobre um lugar que faziam experiências. Um lugar de escuridão.
           
           Muitos dias já haviam se passado e eles permaneciam hospedados com D. MacAran. Trocaram a ajuda no sítio pela leitura do livro, mas não chegaram à sua metade. O velho achou um preço barato, e muitas noites se juntou a eles sobre conjecturas do que ocorrera. Fiolon compartilhou com ele toda a história da guerra entre as duas terras sob a ótica de Ruwenda, através de baladas. Só não se sentiu confortável para cantar a balada que narrava a morte da arquimaga Haramis, não por ter presenciado o fato, mas pelo nome desta não ser bem vindo àquela região. Haviam percebido isto enquanto circulavam pelas tribos: todos compartilharam a opinião de que a arquimaga abandonara o cuidado à Labornok – o que infelizmente era verdade.
               
                – As pessoas que vivem o dia-a-dia sentem-se muito distantes destas questões de poder. – explicou-lhes D. MacAran, quando percebeu que o povo não parecia querer exigir que os donos do poder cumprissem suas obrigações com eles. – É como o olhar de uma lagarta da terra, entendem? Elas não querem saber que há um ser humano que trabalha na terra que elas vivem, e que dependem de agentes da natureza para que a terra fique úmida ou seca: para elas a única coisa que importa é cavar, pois se ela parar para culpar os grandes das coisas, seu trabalho não termina, fica incompleto ou pior, corre o risco de não levar a comida que precisa no final do dia. Os grandes é que deveriam olhar para as minhocas e não o contrário. Mas não é assim que acontece.   
                A amiga de D. MacAran, D. Angélica, esteve lá uma tarde com as netas. Eram duas jovens bastante bonitas cujos pais trabalhavam na cidade. Tentavam convencer D. MacAran a mudar-se para a cidade com elas, pois as coisas não estavam boas nos arredores da floresta.
              – Muitos atravessam a ponte e posso vê-los do Moinho. Quando vejo algum perigo colocamos panos vermelhos nas pás...
   – Porque os panos? - Fiolon quis saber.
   – Dão a impressão de fogo. – disse uma das meninas. - O viajante desvia e pega o caminho do rio.
  – Há algo na floresta MacAran, - prosseguiu D. Angélica -  algo muito ruim. Não haverá ninguém a quem pedirmos ajuda se algum mal nos acontecer. É um tempo de escuridão...
            De novo, Mikayla teve a sensação de que já ouvira a expressão antes, numa outra época. Ela e Fiolon acompanhavam a conversa fingindo desinteresse, mas atentos às informações. Talvez esse fosse o perigo que o sentido da terra de Mikayla lhe transmitia. Olhou para Fiolon e a mensagem foi clara: precisavam partir.

  D. MacAran não escondeu lamentar a partida dos jovens, havia se afeiçoado a eles. Por alguma razão aparentemente boba, mas claramente instintiva, acreditou que eles eram herdeiros dos Desaparecidos. A sede de conhecimento que o casal tinha pelo livro era curiosa e D. MacAran ficava feliz em esclarecer suas dúvidas, relembrava-lhe a época de tutor. A partida, porém, era necessária, isso ele podia compreender. Em três dias os jovens concluíram as tarefas pendentes no sítio: consertos de cercas, limpeza da terra e trato dos animais. Fiolon lamentava não terem terminado o livro e queria crer que encontraria uma cópia do mesmo em algum lugar de Labornok.

– Acredito que outros exemplares existam sim rapazinho, pelo menos no Liceu, se não o consideraram ultrapassado. Este aqui encontra-se na família há gerações. No liceu certamente encontrarão tudo que a gente da sua idade detesta: filosofia, matemática, física, ciências...
– O senhor só pode estar brincando: é justamente o que nós amamos! – disse Mikayla.
– Vocês são os jovens mais extraordinários que já conheci!

Despediram-se numa manhã ensolarada – não porque a arquimaga quis, realmente fazia Sol. Os froniais bastante descansados e preguiçosos, já que exercitaram pouco, demoraram a pegar o ritmo de trote aceitável, o que lhes tomou um tempo considerável pela manhã. Já avistavam a ponte quando resolveram fazer um pequeno desvio e cumprimentar D. Angélica e suas netas, tão gentis durante a visita. Encontraram o silêncio. Algo agourento invadiu suas almas, e puseram a chamar e a vasculhar o interior da casa. Nada. Apenas a bagunça de bens revirados.

– Elas foram atacadas! – Mikayla deu palavras ao que via. Do lado de fora, Fiolon esquadrinhava o local à procura de pistas quando algo respingou em seu ombro. Era viscoso e vermelho. Sangue. Mal teve tempo de olhar para o alto e o grito de Mikayla lhe atingiu: o choque fez com que compartilhassem involuntariamente a visão da arquimaga.  Das janelas do piso superior da casa, ela via lençóis brancos manchados de vermelho pendurados no moinho.

Lençóis que ocultavam os corpos enforcados de D. Angélica e suas duas netas.