Capitulo XV - Doente
A
recuperação de Mikayla não foi lenta, apesar de levar dois dias inteiros até
que ela despertasse de vez. Delirou algumas vezes, atacada por pesadelos. Em um
deles, uma loba corria desesperadamente pela floresta, perseguida por seres que
não eram nyssomus, pareciam metade homens metade cães. Em outro, mulheres
cozinhavam crânios humanos em um caldeirão fervente. A garota acordava aos
gritos, prontamente acalmada por Fiolon.
–“A terra
está sofrendo de novo Fio, e eu não sei por onde começar a ajudar”
–“Encontraremos um jeito, vamos restabelecer a paz em Labornork” – ele a
acalentava.
Fiolon fez
o melhor que podia com as ervas que tinha à sua disposição, mas era ela quem
dominava melhor a arte da cura. E não pôde deixar de rir dos pequenos erros que
ele cometeu em suas tentativas:
– Deveria
ter macerado as folhas do sandogueiro ao invés de simplesmente aquecê-las ao
fogo: potencializaria mais o processo de cura. – Ela o orientou. Os hematomas
melhoraram a aparência, porém ela ainda sentia dores internas e nada poderia
ser feito quanto a isto. Fiolon cogitou retornarem para a torre branca, mas
Mikayla recusou-se prontamente: deveriam continuar a exploração até os mares do
norte.
Somente na manhã do quarto dia Mikayla despertou mais descansada e
revitalizada. As dores eram menos incômodas e ela se permitiu um alongamento
leve. Fiolon despertou poucos minutos depois e sentiu-se aliviado por vê-la
movimentar-se.
– Sabe,
agradeço aos Senhores do Ar por você vestir-se mais como amazona do que como
princesa!
Mikayla não
gostou muito do comentário. Era verdade que habituada à exploração desde criança, ela acostumou-se a vestir calças em quase todas as ocasiões, exceto quando em
algum evento real. Porém, seguindo o raciocínio do arquimago, vestidos bufantes
ou de qualquer espécie teriam facilitado o serviço de seus captores quando
tentaram lhe fazer mal. Esta “lógica” foi o que incomodou seus pensamentos;
afinal que lugar é este que uma mulher precisa cuidar de suas vestes para
evitar ser atacada? “Quem faz isso sequer pode ser considerado humano ou
humanoide!” pensou consigo. Tinha todo o dorso enfaixado com as tiras de sua
blusa, rasgada por Fiolon para fazer os curativos: ele lhe oferecera a própria
blusa para quando retomassem a jornada; sua frustração com o comentário do
marido, porém, a fizera cogitar a possibilidade de prosseguir sem ela.
Caminharam
seguindo o leito do rio a passos lentos. Comiam o que a terra oferecia e do
próprio rio saciavam a sede e aliviavam suas necessidades. Mikayla estava mais
forte, mas percebia Fiolon fraquejar de vez em quando.
– Está
sentindo alguma coisa Fio?
– Estou
bem.
Mikayla
reparou que a pele dele brilhava de suor e não era da caminhada. Aproximou-se e
pôs a mão em seu rosto. Fiolon tentou se desvencilhar, mas ela foi mais rápida.
– Você está
ardendo em febre!! – disse horrorizada – desde quando está assim?
– Começou
esta manhã. Acho que posso aguentar até a próxima aldeia
– Mas que
coisa, Fiolon porque não me avisou? Não podemos prosseguir com você neste
estado!
– É só um
mal estar repentino Mika, vou melhorar.
Mikayla
analisou-o de cima abaixo até que finalmente percebeu o rasgo em sua perna,
provocado pelo corte com a faca.
– Deixe-me
ver isto! – ordenou. Fiolon hesitou antes de mostrar o ferimento. Estava inflamado
e purulento. – Céus, você passou estes dias cuidando de mim e esqueceu de si
próprio?
– “De nada”
por isto – ele resmungou, aborrecido.
Mikayla
tentou apaziguar.
– É claro
que estou agradecida Fio, mas isto nos coloca no mesmo problema de antes, de
não podermos prosseguir. Com certeza isto está infeccionado e não há recursos
conhecidos por aqui para limpar seu sangue, não conheço a botânica de Labornok.
– Mais uma
coisa para colocarmos na lista de aprendizados!
– Você
realmente está tentando ser engraçado? Vamos, precisamos encontrar uma
clareira. Vou chamar um abutre para nos levar para casa...
Fiolon
queria ir para casa. Queria a sopa quente de Enya e seus cobertores. Estava
cansado e sabia que cometera um erro ao tentar sucessivos feitiços de
cicatrização sem analisar a profundidade do ferimento, focado em cuidar de
Mikayla. Mas seu instinto lhe dizia que aquela terra precisava de ajuda, e eles
não podiam recuar.
– Espere!
Porque não vamos para Derorguila? O abutre pode nos deixar próximos à cidade;
lá terei condições de me tratar e você pode continuar a pesquisa.
– Tem
certeza?
– Sim. Esta
terra tem problemas; não sabemos o que é, mas precisamos salvá-la.
***
Anoitecia quando Olho Vermelho
deixou-os no limite da capital, numa área em que o pouso de um animal como ele
não causaria tumulto entre os habitantes; séculos antes, voors transitavam livres
pelos céus, mas os conflito entre as terras fez com que os povos das montanhas
se isolassem, e com isso os animais da região - isso também era outro sinal do
descaso da arquimaga Haramis. Olho vermelho tinha uma repulsa pessoal por
aquela área, mas como era o único abutre que poderia viajar à noite, atendeu à
solicitação dos Arquimagos.
– Meus algozes, os que me
queriam escravo, viviam deste lado. Ainda sinto arrepios. – justificou-se ele,
antes de partir.
Tão logo o animal alçou voo, os
arquimagos puseram se a caminhar. Mal se deslocaram e um barulho chamou sua
atenção: passos na floresta vinham apressadamente em sua direção. Os arquimagos
se prepararam para um ataque, que se revelou em forma de um encontrão
derrubando Fiolon, que instintivamente agarrou seu possível atacante.
– Não, me solte, me
largue! – esganiçou uma voz feminina.
Surpreso – e dolorido, já que a queda avivou sua ferida – Fiolon a soltou.
Quando a jovem tentou fugir, Mikayla a prendeu com magia.
– Por que nos seguia? –
perguntou a arquimaga.
– Eu não os segui, quero
distância de vocês...
– Então porquê nos atacou?
– Por favor, ... não me levem
de volta – disse a jovem, chorosa e
derrotada. Ela parecia cansada e os arquimagos concluíram que poderia estar
havendo um mal entendido.
– Não vamos levá-la a lugar
algum, mas podemos ajudar se nos disser o que esta havendo. – disse Fiolon
A jovem pareceu prender a
atenção em Fiolon antes de responder; se Mikayla tinha a visão de um caçador
noturno, aquela teria garota também?
– Eu pensei que fossem eles,
mas vocês... Vocês não são eles! Seu cheiro é diferente... – aspirou
profundamente – Você – sim ela via
Fiolon no escuro – cheira a sangue. Eles irão caçá-lo. Saia da floresta e não
volte. A primavera está acabando...
– De quem você está falando
garota? Quem são eles? - bradou Mikayla, perdendo a paciência.
Um rosnado alto assustou-os e na
distração, a garota fugiu.
“Aquilo foi ela?” –
perguntaram-se, passado o susto.
– Poderia ao menos nos dizer
qual o caminho mais rápido para sair daqui. – brincou Fiolon, antes de
desmaiar.