Capitulo XII - Na companhia de D. MacAran
– Sempre
morou aqui sozinho? – quis saber Fiolon, assim que terminaram a singela refeição
feita de pães e sopa de adop. Estarem secos, limpos, alimentados e aquecidos
foram os pequenos luxos desejados pelos arquimagos e atendidos naquela noite.
D. MacAran revelou-se ser um valoroso anfitrião, e pareceu animado com sua
presença. Toda desconfiança inicial esvaiu-se assim que puseram os pés na casa, uma espécie de cabana ampliada: sala e cozinha integradas, o quarto do proprietário
e uma sala de banho; a latrina ficava em um cômodo anexo. O ambiente estava
suficientemente limpo e organizado, com uma rigidez militar para um velho
solitário.
– Já tive alguns empregados, mas com a crise todos se
foram. Mantenho o sítio como posso, minha amiga Angélica, que mora do outro
lado do moinho, vem me visitar constantemente. Antes quando algum andarilho
batia em busca de trabalho e abrigo era bom, mas hoje está difícil abrir as
portas...
– Mas o senhor não tem família D. MacAran? – foi a
vez de Mikayla questionar.
– O pai do meu pai foi um soldado do reino, e meu pai
foi mestre de armas. Vivíamos bem na capital, mas as coisas começaram a ficar
ruins. Eu puxei um tio de minha mãe e quis ser mestre, lecionava para filhos
dos nobres que queriam que seus filhos fossem cultos, uma gente do bem. Minha
família e eu vínhamos para cá nos verões, mas com o tempo deixamos o sítio de
lado. Quando o Liceu de Estudos em Derorguila resolveu remodelar suas
disciplinas senti que já havia cumprido meu tempo ali: juntei minhas coisas e
vim para cá. Já estava viúvo há algum tempo, não tivemos filhos. Minha irmã
ainda mora em Derorguila com os filhos.
Fez silêncio por alguns instantes, enquanto o velho parecia viajar nas próprias recordações. Os arquimagos respeitaram este tempo, sabe-se lá quais memórias haviam acionado em um senhor que agora vivia recluso. Um suspiro, e a conversa foi retomada:
–
Mas e vocês: o que fazem por estas bandas tão longe de suas terras? – e vendo o
espanto dos jovens, continuou – Ora não fiquem assim, reconheci pelo sotaque:
você – apontou para Mikayla – com certeza é de Ruwenda, mas você, não consigo
decifrar de onde é.
– Sou de Var – respondeu Fiolon, aliviado e ao mesmo
tempo preocupado: as tribos pareceram não se importar com seu modo de falar,
mas isso poderia ser um problema entre humanos?
– Andarilhos. – complementou Mikayla. – Não temos
mais terras. Caminhamos por aí em busca de conhecimento, trocando trabalho por
abrigo.
– Deveriam ter seguido outro caminho, pois aqui não
há muito que se oferecer.
– Temos nos virado bem! – contestou Mikayla.
– Verão o que falo antes de chegarem às cidades:
Labornok está entregue ao caos.
– Mas a Cidadela controla tudo através dos regentes
em Derorguila!
– Mocinha, com todo respeito que tenho a você e que
creio que você ainda tem pela sua terra eu lhe digo: Ruwenda está pouco se
importando com o que acontece além das Montanhas Ohogan. Desde que me conheço
por gente só querem saber de recolher impostos e tributos para enriquecerem.
Não há mais segurança, uma corja de ladrões e sequestradores se espalhou por todos
os lados. As tribos estão criando as suas próprias leis, e isso se altera entre
desavenças com amigos e laços com inimigos de acordo com seus interesses. E
ainda há essa doença esquisita que não encontram cura... É um mundo sombrio
este que vieram conhecer!
– O que quis dizer com doença esquisita? – perguntou
Fiolon.
– Não sabemos de onde começou, mas ataca somente os
jovens, os homens exclusivamente. Ficam violentos e selvagens. Uma patrulha
ronda por aí coletando-os, porém ouvi dizer que muitos fugiram e atacam em
bandos. Não há registros de coisa igual em lugar algum. Parece até com os
experimentos que os Desaparecidos fizeram antes de partirem...
– Que experimentos? – Mikayla e Fiolon perguntaram
juntos.
D. MacAran olhou-os com curiosidade:
– Ora, ora, dizem que saem por aí em busca de
conhecimento e não sabem a história dos Desaparecidos? A História da nossa
origem?
– Mas é claro que sabemos quem são nossos
antepassados! – bradou Mikayla
– Então sabem que eles quase explodiram este mundo,
certo? E arrependidos criaram as raças aborígenes?
A guerra nuclear. Os arquimagos sabiam disto. Foi na primavera de sua civilização, seus ancestrais desenvolveram uma tecnologia riquíssima, mas isto criou desavenças, desequilibrou os polos e quase destruiu seu mundo. Aquele povo se sentiu culpado e partiu, não se sabe para onde, deixando outros seres para cuidar melhor do que eles quase acabaram. Eles sabiam que os humanos das aldeias distantes, que nada souberam daquela guerra, iriam saciar sua sede de conhecimento e curiosidade algum dia, o que os fariam migrar de suas regiões; dito e feito, milhares de anos depois os humanos novamente se espalharam pelo mundo das Três Luas e o dominaram.
O silêncio e olhar perdido dos arquimagos deu a D. MacAran a impressão errada. O velho divertiu-se com o que considerou “expressões de assombro” e achou que aquele seria o bom momento para uma “aula”. Sentiu seu instinto de educador, há anos adormecido, despertar e espreguiçar-se. Levantou-se animado até seus aposentos, carregando um lampião consigo. O cômodo era mediano, uma cama em um canto, uma escrivaninha ao lado da porta, e prateleiras espalhadas pelas quatro paredes repletas do tesouro mais precioso para os arquimagos: livros.
– Aqui está! – gemeu D.MacAran, ao fazer um esforço
para retirar um grosso volume de uma das prateleiras. – Neste volume temos toda
a pesquisa feita pelo catedrático Silas Vancour, que compilou toda história
conhecida sobre nosso mundo, desde canções e anotações. É um volume raro!
Os arquimagos reuniram-se fascinados ao redor do velho, maravilhados com aquelas páginas envelhecidas. Haviam nelas o conhecimento que preencheria as lacunas que eles não sabiam existir? D. MacAram abriu num trecho no meio do, que narrava justamente a partida dos Desaparecidos. Enquanto lia, a atenção dos arquimagos foi desviada para uma gravura na página, que recriava anotações encontradas junto com alguns artefatos antigos. Estava na língua dos Desaparecia, língua que Mikayla e Fiolon dominavam, e parecia também ser de domínio do autor do livro, já que o trecho destacado tratava justamente de um acordo de proteção firmado por três dos Desaparecidos, que ficariam e cuidariam para que a maldade não voltasse a enegrecer os corações dos humanos outra vez: Derby, Iriane e Binah.
– É Binah! A primeira arquimaga? – disseram os dois ao mesmo tempo, deixando D. MacAran perdido em meio a sua leitura.
– Hein?
Sim, parece que a Arquimaga Binah fazia parte do grupo dos Desaparecidos que
não “desapareceu”. Ela foi importante em muitos eventos ao longo da nossa história.
Não diz para onde os outros dois foram...
D. MacAran
bocejou, e todos perceberam que estava tarde. Mesmo assim Fiolon não resistiu e
perguntou se não poderia continuar lendo o livro antes de dormir.
– Claro! E
se desejar podemos conversar mais pela manhã. Mas agora perdoem um pobre velho
mas preciso descansar. Boa noite!
Eles
esperaram o velho se recolher para conversar mentalmente entre si.
– “Esse
livro contém a história do mundo, não só de Ruwenda, Labornok e Var.” – ruminou
Fiolon – “Não acha estranho que só a arquimaga de Ruwenda tenha sido citada?”
Mikayla considerou relevante a pergunta do companheiro, mas não tinha uma resposta para ela. Enquanto Fiolon corria até os seus pertences à procura de um bloco de anotações, pena e tinta, ela sentiu que era importante obterem aquele conhecimento. Seria orientações ocultas dos Senhores do Ar para complementarem seu aprendizado? Afinal, porque um livro como aquele não estava na biblioteca de nenhum dos dois palácios?
Fiolon já começara as anotações e ela foi sentar-se ao lado dele, compartilhando mentalmente aquilo que liam. Mas fora um dia longo, e logo o cansaço abateu sobre eles com força. Mikayla cambaleou para a cama feita no chão; Fiolon resistiu um pouco mais, mas acabou adormecendo com debruçado nas próprias anotações.
E desta
vez, os olhos que os observavam pelas frestas das paredes de madeira não foram percebidos.
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