domingo, 12 de novembro de 2017

Arquimagos - Explorando Labornok

Capitulo XIII - Pesadelos

             Havia mulheres gritando. E crianças também. Bebês. O fogo que parecia lamber as paredes era apenas uma série de fogueiras acesas para iluminar o lugar. Uma tenda? Uma caverna? Não dava para saber. As mulheres gritavam cadenciadamente, percebeu. Era um coro: havia dor, mas também preocupação. Partos coletivos. Os curandeiros estavam vestidos de negro, com máscaras. Porque não podiam deixar ver seus rostos? Um par também vestido de preto e mascarado acompanhava tudo a certa distância. Os recém-nascidos eram levados até eles. Uma espécie de seleção? Uns para esquerda, outros seguiam a direita, mas outros eram levados para outro lugar. A visão seguiu o curandeiro que levou um dos recém-nascidos. Havia urgência em carregá-lo para longe. Uma carroça esperava, outras crianças gemiam em cestas cobertas de tecido e palha.
                Não.                Crianças não!

                Mikayla acordou sobressaltada, assustando Fiolon, que derrubou o vidro de tinta sobre as próprias anotações.
                – “Acho que tive um sonho ruim”
                – “Percebi. Mas tem certeza de que fora sonho?”
            – “Não sei... Acho que foi influencia do assunto de antes de dormir. Sonhei que mulheres estavam parindo e dentre as crianças normais havia... monstros”
                 Fiolon suspirou.
                – “Pode ter sido culpa minha. Estava lendo justamente sobre como os desapare-cidos criaram novas espécies. Eles usaram todo o tipo de fêmea, inclusive humanas”
                – “Cruzes!” – pensou Mikayla, mas uma recordação longínqua lhe veio à mente: mais  alguém já lhe falara sobre um lugar que faziam experiências. Um lugar de escuridão.
           
           Muitos dias já haviam se passado e eles permaneciam hospedados com D. MacAran. Trocaram a ajuda no sítio pela leitura do livro, mas não chegaram à sua metade. O velho achou um preço barato, e muitas noites se juntou a eles sobre conjecturas do que ocorrera. Fiolon compartilhou com ele toda a história da guerra entre as duas terras sob a ótica de Ruwenda, através de baladas. Só não se sentiu confortável para cantar a balada que narrava a morte da arquimaga Haramis, não por ter presenciado o fato, mas pelo nome desta não ser bem vindo àquela região. Haviam percebido isto enquanto circulavam pelas tribos: todos compartilharam a opinião de que a arquimaga abandonara o cuidado à Labornok – o que infelizmente era verdade.
               
                – As pessoas que vivem o dia-a-dia sentem-se muito distantes destas questões de poder. – explicou-lhes D. MacAran, quando percebeu que o povo não parecia querer exigir que os donos do poder cumprissem suas obrigações com eles. – É como o olhar de uma lagarta da terra, entendem? Elas não querem saber que há um ser humano que trabalha na terra que elas vivem, e que dependem de agentes da natureza para que a terra fique úmida ou seca: para elas a única coisa que importa é cavar, pois se ela parar para culpar os grandes das coisas, seu trabalho não termina, fica incompleto ou pior, corre o risco de não levar a comida que precisa no final do dia. Os grandes é que deveriam olhar para as minhocas e não o contrário. Mas não é assim que acontece.   
                A amiga de D. MacAran, D. Angélica, esteve lá uma tarde com as netas. Eram duas jovens bastante bonitas cujos pais trabalhavam na cidade. Tentavam convencer D. MacAran a mudar-se para a cidade com elas, pois as coisas não estavam boas nos arredores da floresta.
              – Muitos atravessam a ponte e posso vê-los do Moinho. Quando vejo algum perigo colocamos panos vermelhos nas pás...
   – Porque os panos? - Fiolon quis saber.
   – Dão a impressão de fogo. – disse uma das meninas. - O viajante desvia e pega o caminho do rio.
  – Há algo na floresta MacAran, - prosseguiu D. Angélica -  algo muito ruim. Não haverá ninguém a quem pedirmos ajuda se algum mal nos acontecer. É um tempo de escuridão...
            De novo, Mikayla teve a sensação de que já ouvira a expressão antes, numa outra época. Ela e Fiolon acompanhavam a conversa fingindo desinteresse, mas atentos às informações. Talvez esse fosse o perigo que o sentido da terra de Mikayla lhe transmitia. Olhou para Fiolon e a mensagem foi clara: precisavam partir.

  D. MacAran não escondeu lamentar a partida dos jovens, havia se afeiçoado a eles. Por alguma razão aparentemente boba, mas claramente instintiva, acreditou que eles eram herdeiros dos Desaparecidos. A sede de conhecimento que o casal tinha pelo livro era curiosa e D. MacAran ficava feliz em esclarecer suas dúvidas, relembrava-lhe a época de tutor. A partida, porém, era necessária, isso ele podia compreender. Em três dias os jovens concluíram as tarefas pendentes no sítio: consertos de cercas, limpeza da terra e trato dos animais. Fiolon lamentava não terem terminado o livro e queria crer que encontraria uma cópia do mesmo em algum lugar de Labornok.

– Acredito que outros exemplares existam sim rapazinho, pelo menos no Liceu, se não o consideraram ultrapassado. Este aqui encontra-se na família há gerações. No liceu certamente encontrarão tudo que a gente da sua idade detesta: filosofia, matemática, física, ciências...
– O senhor só pode estar brincando: é justamente o que nós amamos! – disse Mikayla.
– Vocês são os jovens mais extraordinários que já conheci!

Despediram-se numa manhã ensolarada – não porque a arquimaga quis, realmente fazia Sol. Os froniais bastante descansados e preguiçosos, já que exercitaram pouco, demoraram a pegar o ritmo de trote aceitável, o que lhes tomou um tempo considerável pela manhã. Já avistavam a ponte quando resolveram fazer um pequeno desvio e cumprimentar D. Angélica e suas netas, tão gentis durante a visita. Encontraram o silêncio. Algo agourento invadiu suas almas, e puseram a chamar e a vasculhar o interior da casa. Nada. Apenas a bagunça de bens revirados.

– Elas foram atacadas! – Mikayla deu palavras ao que via. Do lado de fora, Fiolon esquadrinhava o local à procura de pistas quando algo respingou em seu ombro. Era viscoso e vermelho. Sangue. Mal teve tempo de olhar para o alto e o grito de Mikayla lhe atingiu: o choque fez com que compartilhassem involuntariamente a visão da arquimaga.  Das janelas do piso superior da casa, ela via lençóis brancos manchados de vermelho pendurados no moinho.

Lençóis que ocultavam os corpos enforcados de D. Angélica e suas duas netas. 



sábado, 4 de novembro de 2017

Arquimagos - Explorando Labornok

Capitulo XII - Na companhia de D. MacAran


– Sempre morou aqui sozinho? – quis saber Fiolon, assim que terminaram a singela refeição feita de pães e sopa de adop. Estarem secos, limpos, alimentados e aquecidos foram os pequenos luxos desejados pelos arquimagos e atendidos naquela noite. D. MacAran revelou-se ser um valoroso anfitrião, e pareceu animado com sua presença. Toda desconfiança inicial esvaiu-se assim que puseram os pés na casa, uma espécie de cabana ampliada: sala e cozinha integradas, o quarto do proprietário e uma sala de banho; a latrina ficava em um cômodo anexo. O ambiente estava suficientemente limpo e organizado, com uma rigidez militar para um velho solitário.
         – Já tive alguns empregados, mas com a crise todos se foram. Mantenho o sítio como posso, minha amiga Angélica, que mora do outro lado do moinho, vem me visitar constantemente. Antes quando algum andarilho batia em busca de trabalho e abrigo era bom, mas hoje está difícil abrir as portas...
          – Mas o senhor não tem família D. MacAran? – foi a vez de Mikayla questionar.
          – O pai do meu pai foi um soldado do reino, e meu pai foi mestre de armas. Vivíamos bem na capital, mas as coisas começaram a ficar ruins. Eu puxei um tio de minha mãe e quis ser mestre, lecionava para filhos dos nobres que queriam que seus filhos fossem cultos, uma gente do bem. Minha família e eu vínhamos para cá nos verões, mas com o tempo deixamos o sítio de lado. Quando o Liceu de Estudos em Derorguila resolveu remodelar suas disciplinas senti que já havia cumprido meu tempo ali: juntei minhas coisas e vim para cá. Já estava viúvo há algum tempo, não tivemos filhos. Minha irmã ainda mora em Derorguila com os filhos.
                
     Fez silêncio por alguns instantes, enquanto o velho parecia viajar nas próprias recordações. Os arquimagos respeitaram este tempo, sabe-se lá quais memórias haviam acionado em um senhor que agora vivia recluso. Um suspiro, e a conversa foi retomada:
         – Mas e vocês: o que fazem por estas bandas tão longe de suas terras? – e vendo o espanto dos jovens, continuou – Ora não fiquem assim, reconheci pelo sotaque: você – apontou para Mikayla – com certeza é de Ruwenda, mas você, não consigo decifrar de onde é.
         – Sou de Var – respondeu Fiolon, aliviado e ao mesmo tempo preocupado: as tribos pareceram não se importar com seu modo de falar, mas isso poderia ser um problema entre humanos?
          – Andarilhos. – complementou Mikayla. ­– Não temos mais terras. Caminhamos por aí em busca de conhecimento, trocando trabalho por abrigo.
          – Deveriam ter seguido outro caminho, pois aqui não há muito que se oferecer.
          – Temos nos virado bem! – contestou Mikayla.
          – Verão o que falo antes de chegarem às cidades: Labornok está entregue ao caos.
          – Mas a Cidadela controla tudo através dos regentes em Derorguila!
         – Mocinha, com todo respeito que tenho a você e que creio que você ainda tem pela sua terra eu lhe digo: Ruwenda está pouco se importando com o que acontece além das Montanhas Ohogan. Desde que me conheço por gente só querem saber de recolher impostos e tributos para enriquecerem. Não há mais segurança, uma corja de ladrões e sequestradores se espalhou por todos os lados. As tribos estão criando as suas próprias leis, e isso se altera entre desavenças com amigos e laços com inimigos de acordo com seus interesses. E ainda há essa doença esquisita que não encontram cura... É um mundo sombrio este que vieram conhecer!
            – O que quis dizer com doença esquisita? – perguntou Fiolon.
       – Não sabemos de onde começou, mas ataca somente os jovens, os homens exclusivamente. Ficam violentos e selvagens. Uma patrulha ronda por aí coletando-os, porém ouvi dizer que muitos fugiram e atacam em bandos. Não há registros de coisa igual em lugar algum. Parece até com os experimentos que os Desaparecidos fizeram antes de partirem...
             – Que experimentos? – Mikayla e Fiolon perguntaram juntos.
             D. MacAran olhou-os com curiosidade:
          – Ora, ora, dizem que saem por aí em busca de conhecimento e não sabem a história dos Desaparecidos? A História da nossa origem?
              – Mas é claro que sabemos quem são nossos antepassados! – bradou Mikayla
         – Então sabem que eles quase explodiram este mundo, certo? E arrependidos criaram as raças aborígenes?
         
             A guerra nuclear. Os arquimagos sabiam disto. Foi na primavera de sua civilização, seus ancestrais desenvolveram uma tecnologia riquíssima, mas isto criou desavenças, desequilibrou os polos e quase destruiu seu mundo. Aquele povo se sentiu culpado e partiu, não se sabe para onde, deixando outros seres para cuidar melhor do que eles quase acabaram. Eles sabiam que os humanos das aldeias distantes, que nada souberam daquela guerra, iriam saciar sua sede de conhecimento e curiosidade algum dia, o que os fariam migrar de suas regiões; dito e feito, milhares de anos depois os humanos novamente se espalharam pelo mundo das Três Luas e o dominaram.
          
            O silêncio e olhar perdido dos arquimagos deu a D. MacAran a impressão errada. O velho divertiu-se com o que considerou “expressões de assombro” e achou que aquele seria o bom momento para uma “aula”. Sentiu seu instinto de educador, há anos adormecido, despertar e espreguiçar-se. Levantou-se animado até seus aposentos, carregando um lampião consigo. O cômodo era mediano, uma cama em um canto, uma escrivaninha ao lado da porta, e prateleiras espalhadas pelas quatro paredes repletas do tesouro mais precioso para os arquimagos: livros.
           – Aqui está! – gemeu D.MacAran, ao fazer um esforço para retirar um grosso volume de uma das prateleiras. – Neste volume temos toda a pesquisa feita pelo catedrático Silas Vancour, que compilou toda história conhecida sobre nosso mundo, desde canções e anotações. É um volume raro!
        
        Os arquimagos reuniram-se fascinados ao redor do velho, maravilhados com aquelas páginas envelhecidas. Haviam nelas o conhecimento que preencheria as lacunas que eles não sabiam existir? D. MacAram abriu num trecho no meio do, que narrava justamente a partida dos Desaparecidos. Enquanto lia, a atenção dos arquimagos foi desviada para uma gravura na página, que recriava anotações encontradas junto com alguns artefatos antigos. Estava na língua dos Desaparecia, língua que Mikayla e Fiolon dominavam, e parecia também ser de domínio do autor do livro, já que o trecho destacado tratava justamente de um acordo de proteção firmado por três dos Desaparecidos, que ficariam e cuidariam para que a maldade não voltasse a enegrecer os corações dos humanos outra vez: Derby, Iriane e Binah.

– É Binah! A primeira arquimaga? – disseram os dois ao mesmo tempo, deixando D. MacAran perdido em meio a sua leitura.
– Hein? Sim, parece que a Arquimaga Binah fazia parte do grupo dos Desaparecidos que não “desapareceu”. Ela foi importante em muitos eventos ao longo da nossa história. Não diz para onde os outros dois foram...
D. MacAran bocejou, e todos perceberam que estava tarde. Mesmo assim Fiolon não resistiu e perguntou se não poderia continuar lendo o livro antes de dormir.
– Claro! E se desejar podemos conversar mais pela manhã. Mas agora perdoem um pobre velho mas preciso descansar. Boa noite!
Eles esperaram o velho se recolher para conversar mentalmente entre si.
– “Esse livro contém a história do mundo, não só de Ruwenda, Labornok e Var.” – ruminou Fiolon – “Não acha estranho que só a arquimaga de Ruwenda tenha sido citada?”

Mikayla considerou relevante a pergunta do companheiro, mas não tinha uma resposta para ela. Enquanto Fiolon corria até os seus pertences à procura de um bloco de anotações, pena e tinta, ela sentiu que era importante obterem aquele conhecimento. Seria orientações ocultas dos Senhores do Ar para complementarem seu aprendizado? Afinal, porque um livro como aquele não estava na biblioteca de nenhum dos dois palácios?

Fiolon já começara as anotações e ela foi sentar-se ao lado dele, compartilhando mentalmente aquilo que liam. Mas fora um dia longo, e logo o cansaço abateu sobre eles com força. Mikayla cambaleou para a cama feita no chão; Fiolon resistiu um pouco mais, mas acabou adormecendo com debruçado nas próprias anotações.

E desta vez, os olhos que os observavam pelas frestas das paredes de madeira não foram percebidos.