sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Os rumos do meu coração

Ah... as paixões avassaladoras da adolescência, que fazem tudo parecer o fim do mundo!
Quem não teve um conflito amoroso na juventude, que atire a primeira pedra!


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S
eguir os caminhos do vento é fácil, é um só. Ele avança sobre as barreiras, faz suas curvas, diminui ou aumenta a velocidade, rodopia... Mas está sempre em uma direção. Porém como seguir o rio, com seus dois, três, dez ou até mil afluentes? E quando seu coração resolve imitar o rio, nos dividindo em difíceis decisões? Foi o que aconteceu comigo alguns anos atrás, quando eu tinha a mesma idade que você.

Guiga e Nando foram dois garotos que conheci quando criança e eram super legais. O Nando bonzinho e o Guiga companheiro. Não eram parentes, pareciam não fazer idéia da existência um do outro em minha vida, já que os conheci em lugares distintos. O Nando foi na escola, loirinho, de olhos claros e sorridentes. Fazíamos tudo juntos em classe, a começar por dividir a mesma mesa: discutíamos, brincávamos, colávamos – às vezes! Na hora do recreio ia cada um para o seu lado, mas em sala de aula, dedicávamos o tempo um com o outro. Eu sempre fui aluna de dez, ele era – ou é – aluno de dez e juntos éramos alunos de cem. As outras crianças sempre vinham com aquela brincadeira de que éramos namorados, mas apesar das gozações nos considerávamos ótimos amigos (aliás, ele era o único amigo verdadeiro que eu possuía naquela escola detestável!). Já o Guiga eu conheci porque ele morava perto da casa onde a minha mãe trabalhava. Era em uma rua larga e sem saída, mas que tinham poucas crianças. Certa vez ela não tinha com quem me deixar, então me levou para lá; enquanto eu estava sentada na varanda sem nada para fazer o Guiga me chamou para brincar. Ele era moreno, com cabelos pretos encaracolados e olhos castanho-escuros. Era considerado o “ovelha negra” da família, por seus gostos serem completamente diferentes do dos seus pais, mas ele jurava que não era questão de rebeldia; apenas queria ampliar os próprios horizontes.

Apesar de fisicamente diferentes, o que o Nando e o Guiga tinham em comum era a beleza: eles eram lindos, lindíssimos!! O Nando tinha um jeito angelical e dedicado, além de ter uma imaginação maior que o mundo: quantas vezes estivemos em perigo em plena floresta amazônica, fugindo de jacarés e onças enquanto a professora ministrava uma aula de ciências? E quantas vezes fui á Marte e descobri que os homens verdes eram menos inteligentes do que nós? Esse era o Nando... Já o Guiga, o que tinha de “rebelde” tinha de engraçado: conseguia arrancar um sorriso da pessoa mais carrancuda que houvesse no mundo – e isso sem ser pejorativo! Era o jeito dele, sua natureza: ser divertido. Eu adorava os dois, meu mundo era muito bem dividido com eles na minha vida, Nando na escola e o Guiga algumas tardes. Com eles aprendi um bocado de coisas: Nando, a tabuada de cor; Guiga, a andar de bicicleta. O Nando me auxiliou quando tive dificuldades em uma matéria de prova; já o Guiga me incentivou a provar que meninas sabiam jogar bola – sou um desastre até hoje!! Desistiu e me ensinou a jogar totó...

Nando na escola, e Guiga nas brincadeiras. E assim crescemos. Eu não percebi que já éramos adolescentes, expostos à toda complexidade hormonal que esta época nos impõe; na verdade eu era uma menina tranquila – não ingênua, mas sem maldades mesmo. Passava boa parte da minha vida convivendo com dois garotos e nunca notei que eles poderiam ser meus primeiros amores. Mas eles sim. E numa tarde em que eu rolei de bicicleta morro abaixo com um Guiga desesperado atrás de mim e eu morrendo de rir, ele me olhou nos olhos aparentemente muito zangado e disse: “Nunca mais faça isso!”. E me beijou. As gargalhadas cessaram na hora e uma garota muito assustada tomou posse de mim. Ele se afastou e eu - que estava de olhos abertos o tempo inteiro! - não consegui dizer absolutamente nada. Quando ele fez menção de se aproximar de novo eu o afastei, peguei minha bicicleta e com o joelho sangrando fui em direção á casa onde minha mãe trabalhava. Como eu não briguei, ele me acompanhou em silencio até a casa, mas quando eu fiz menção de entrar sem lhe dizer nada ele gritou: “Desculpa! Eu estava assustado! E eu gosto de você!!”. Nem preciso dizer que eu e um tomate éramos irmãos gêmeos...!

Quando eu entrei na casa, levei uma bronca por ter caído, no entanto o remédio passado para limpar o joelho nem ardeu: meu coração, que batia tão descompassadamente, me deixou anestesiada. Passado o choque, veio o sorriso de ponta a ponta: afinal o Guiga gostava de mim! Mas e eu, gostava dele? E o Nando: onde ele ficaria nesta história?

Pois é... foi neste instante que me dei conta da importância que os dois tinham na minha vida. Eu era amiga dos dois, mas este “algo mais” era totalmente novo. Passei a noite revivendo aquele beijo inocente, e no dia seguinte o sorriso de ponta a ponta ainda estava lá, estampado no meu rosto e me entregando para qualquer um que passasse.

Inclusive o Nando.

 - O que houve com você? Porque está assim hoje? – ele perguntou

Eu queria contar; afinal ele era o meu melhor amigo na escola, mas mordi os lábios, pois uma pontinha de insegurança veio na minha mente. Balancei a cabeça como quem diz “nada não” e continuei copiando a matéria. Durante toda a aula eu sentia seu olhar de tempos em tempos e achava engraçada a sua curiosidade – e em nenhum momento desconfiei o que ele poderia estar pensando, afinal, minha cabeça ainda estava no Guiga. Foi bem no finalzinho da aula, logo depois que o alarme de saída tocou, que ele se aproximou e revelou seus pensamentos:

- Você finalmente descobriu não é? – ele me perguntou com um ar zombeteiro e o mesmo sorriso de ponta a ponta que eu estava. Porque não reparei que aquele sorriso era igual ao meu? Ao invés disso respondi com um “O quê?” de quem não está entendendo nada e me perdi naqueles olhos cor de mar que se aproximaram como uma onda e se derramaram em minha boca. Outro beijo em menos de 24 horas. Mas não era do mesmo cara! Não houve olhos abertos, e apesar do susto não houve coração descompassado: minha mente já sabia o que era e meu corpo reagiu bem. Pude sentir melhor o beijo, apreciá-lo, e talvez isto tenha dado ao Nando a impressão de aceitação. “Eu gosto de você!”, ele sussurrou. Quando ele se afastou tinha o rosto mais iluminado do que quando tínhamos feito uma viagem fantástica ao centro da Terra junto com Júlio Verne! Passou a mão no meu rosto e com jeito de menino que não se importa disse “Preciso ir, mas a gente se fala amanhã!”. Eu ignorei completamente as duas meninas que não iam com a minha cara e me olhavam com aquele olhar de desprezo que só as adolescentes sabem fazer bem – pura inveja, preciso dizer! – enquanto pensava em tudo que tinha acontecido.

Dois garotos.

Dois beijos.

Uma menina.

A matemática não estava batendo. Ou estava?

Fui para casa, disse para minha mãe que estava doente e que não poderia ajudá-la naquele dia (se de início eu ia lá por não ter ninguém que tomasse conta de mim, já adolescente eu ia ao trabalho dela para adiantar alguns de seus serviços e ela poder sair mais cedo - além de brincar com o Guiga, de quem naquele momento estava fugindo propositalmente!). Também não fui á aula no dia seguinte, passei todo tempo pensando no que havia acontecido e no que eu deveria fazer. Gostava dos dois por igual. Talvez se o Nando não tivesse me beijado eu teria ficado com o Guiga, pois não haveria uma “outra” opção. Mas aquele “finalmente descobriu” que ele disse significava que seus sentimentos eram mais antigos, e eu mesma já não tinha certeza se não gostava dele desde antes também. Eu não poderia namorar os dois ao mesmo tempo - juro que pensei nisto, mas onde ficaria a minha cara quando um me descobrisse com o outro? Acho que eu sumiria... Estava dividida entre a beleza do dia e os mistérios da noite, entre o mar e as montanhas. Foi como se estivesse navegando por um rio calmo e seguro, que de repente tornara-se caudaloso e surgisse à minha frente dois caminhos, cada qual com a sua qualidade, cada qual com a sua justificativa para ser a escolha perfeita: um caminho de belas flores e o outro de animais raros. Porém escolher um era privar-me dos encantos do outro e de suas surpresas. Eu tinha que escolher, e rápido.

Quando retornei às aulas dois dias e um final de semana depois do beijo eu tinha uma decisão. Para ambos. Entrei em sala e o Nando me olhava preocupado: o pobrezinho passara aqueles dois dias sendo a chacota dos garotos por ter “perdido a namorada”, mas comportou-se como um cavalheiro. Eu soube disto pouco antes de chegar à classe e tive que repensar o meu discurso. Ao ver seu olhar aflito, gritei um “hei!” com um sorriso forçado e antes que qualquer um comentasse alguma coisa agarrei seu rosto e tasquei-lhe um beijo. O coro à nossa volta vibrou com o velho “Tá namorando, tá namorando!” e eu com a cara mais blasé possível rebati: “Nós estamos juntos há um tempão, porquê esta comoção agora?”, “Ah, porque agora é oficial!” gritou um dos meninos “Oficial? Agora? Vocês zoavam a gente desde sempre, eu estava crente que já sabiam...!” e assim cortei o clima. Mas precisava acertar as coisas. E foi no final da aula que eu lhe disse que não podia namorar com ele; me sentia muito nova e que só fizera aquilo de manhã porque soubera o que tinha acontecido enquanto estava fora. Eu o amava como a um amigo, um irmão e não queria que ele sofresse por minha causa.

- Você é uma escrota! E eu não preciso da sua piedade! – foi sua resposta. 

Saí da escola com um aperto no peito, magoadíssima com a sua atitude, pois de todas as reações esta era a única não esperada. Eu entendo que ninguém quer ouvir um “não vou namorar com você”, mas ofender uma pessoa a quem você dizia ser “amigo” é desnecessário! E o pior de tudo era que o dia ainda não havia acabado, ainda havia coisas a se resolver. O Guiga já estava lá na calçada quando cheguei no serviço da minha mãe, com seus grandes fones de ouvido que naquele momento não emitiam som algum, apenas justificavam seu caminhar de um lado para o outro. Um sorriso largo se abriu no seu rosto, enquanto um tímido saiu do meu. “Então, precisamos conversar!”, eu comecei. E lá se foi toda a ladainha de novo, de ser muito jovem, gostar dele como amigo, etc. etc.

- É o cara da sua escola não é? – ele perguntou – Aquele “Nando”... Desde que te conheço você fala dele...

Eu me vi surpresa: na verdade nunca me dera conta de que falava do Nando para o Guiga. Será que inconscientemente trazia o Nando para todos os meus momentos? Então me lembrei de como ele reagiu à minha decisão e concluí que não merecia alguém assim.

 - Não Gui, não é o cara da escola. É por minha causa mesmo...

Ele sorriu, e pelo menos com ele foi mais fácil – ou ele soube disfarçar muito bem! O Nando passou a semana me evitando, falando pouco e eu também estava sem jeito de lidar  com ele. Ele foi sensato em não querer mudar de lugar pois isso ia gerar mais incômodos para nós, com os colegas da classe questionando o que acontecera entre a gente.

 - E então, ele está feliz? – perguntou ele às vésperas do final de semana. Eu estava terminando a nota de um exercício, parei o lápis no ar e olhei para ele com aquela cara de “sobre o que você está falando?”- O Guilherme! Ou você achou que eu ia acreditar naquela historinha de que “você é novinha demais”?

Foi então que a minha ficha caiu, e eu compreendi o que estava se passando na cabeça dele. Eles eram tão presentes na minha vida que eu realmente falava de um para o outro sem perceber. Uma lágrima teimosa ficou querendo sair dos meus olhos, mas respirei fundo e a mantive no lugar.

- Você achou que eu tivesse dispensado você porque estava namorando o Guiga...  – falei enquanto fechava meu caderno e guardava minhas coisas - Sabe Nando, o Guiga é tão meu amigo quanto você, ou pelo menos quanto você era, porque eu sempre esperei que meus amigos me conhecessem bem, e você acaba de provar que não é o seu caso: a “historinha” que diz que eu criei é a minha realidade; você deveria saber! – e fui saindo da sala, mas ele pulou da carteira e me segurou!

- Espera! Desculpa eu... eu... achei que...

- Você simplesmente não acreditou em mim e achou que eu estava com o Guiga!!

- Desculpa... É que... Não é fácil receber um “não” como resposta...!

- E não é fácil ser ofendida sem motivo! Você me chamou de “escrota” Nando!...

- Ah eu sempre te chamei de “escrota”!

- Não com aquela conotação!

- Desculpa vai... Deixa eu ser seu amigo de novo!

- Você quem quis deixar de ser...!
         
         - Hummm, essa frase pode ser interpretada para duas situações!

E então nós rimos. Mas eu sabia que nada ia ser como antes.

No final daquele dia eu sentia um alívio e ao mesmo tempo um vazio. Alívio por ter resolvido esta questão sem machucar ninguém e vazio porque também sabia que a partir dali minha relação com meus únicos amigos iria mudar; sentia que ia perdê-los em breve. E perdi.  Não, não foi como acordar e não ter mais a amizade, mas aquele fato foi um divisor de águas em nossa relação. Com um tempo passei a assumir mais tarefas no serviço da minha mãe e já não tinha mais tempo livre para conversar com o Guiga, até que a família dele se mudou para outro estado: ele até me escreveu umas duas cartas, mas sabem como são os meninos e suas distrações, se não param para fazer os deveres da escola que dirá escrever uma carta para uma amiga distante que rejeitou o seu afeto. Já o Nando, foi um problema de ideais de futuro: eu queria trabalhar logo, e onde estudávamos não oferecia ensino profissionalizante; logo, precisei mudar de escola. Até trocamos de telefone, mas sabem como são os meninos e os telefones...

Saí da minha canoa e segui por terra, mas vez ou outra ainda posso sentir o perfume das flores ou ouvir o murmurar dos animais. Com o avanço das tecnologias, conversando com um ou outro colega pude saber deles, como estavam, mas nunca tentei um contato; já não éramos mais crianças, provavelmente mudamos bastante e eu preferi ficar com a recordação de como eles eram.

          Ah... mas como eu gostava do Nando...! E do Guiga também! 


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