Parte I - A Boneca
Estou com saudades da minha amiga Memê. Se eu soubesse por onde ela anda, eu enviaria uma carta, um e-mail...Mas Memê nunca me diz onde está, apenas recebo seus postais algumas vezes por ano, sem que eu possa respondê-la. É melhor do que nada, eu sei. Ainda assim, gostaria de escrever para ela.
Conheci Memê quando sua família mudou-se para o
nosso condomínio – na verdade, um daqueles conjuntos habitacionais precários
que o governo concede aos moradores quando a imprensa pressiona sobre algum
desastre na favela! Eu tinha oito anos, ela dez. Além de mais velha, mais alta,
mas não se podia dizer que era bonita: magricela, tinha um cabelo comprido, de
um tom loiro sujo, uns olhos grandes esverdeados e a pele curtida de sol. Memê
poderia ser modelo se quisesse, não pela beleza, como eu disse, mas pelo seu
porte: havia nela uma segurança, um domínio de presença que calava qualquer
desavença, qualquer assunto que estivesse sendo discutido quando ela passava.
Era uma menina, mas parecia ter toda a vivência de uma pessoa antiga. Pouco se
importava com a própria aparência, vestia-se largada como um menino, e assim
ninguém reparava muito nela no quesito "beleza exterior". Se bem que
quando chegou, as meninas do condomínio ficaram um pouco inseguras, e fizeram o
que todos fazem quando se sentem ameaçados: atacaram. Como ela não ligou para
seus comentários, as meninas a deixaram em paz.
Só fui conversar com a Memê quase um ano depois de sua chegada –
antes eram apenas aqueles comprimentos educados, ou nem isso. Naquele dia,
Gina, "a Dona do Play", resolveu que só iriam brincar aquelas que
tivessem "Barbie". Eu não tinha a tal boneca, até
as falsas eram caras demais. Estava no corredor do meu andar, olhando elas
brincarem no play quando Memê chegou: meião até os joelhos, chuteiras no lugar
das sandalinhas cor de rosa que toda menina usava, bermudão, top, a blusa do
uniforme amarrada na mochila e um walkman com fones de arco de metal nos
ouvidos. Trocamos olhares enquanto ela destrancava a porta. Entrou, saindo meia
hora depois, com cheiro de sabonete e colônia. Fato que já tinha um compromisso,
mas mudou de ideia e veio debruçar-se no peitoril do corredor comigo.
– O que está acontecendo lá embaixo? – quis saber. Sua voz era determinada, e me
fez sentir menor do que eu estava me sentindo.
– Uma festa da Barbie.
– E você não foi convidada?
– Não. Só pode ir quem tem Barbie e eu não tenho.
Silêncio
– Você gostaria de ir?
– Claro! Todas as minhas amigas estão lá!
Memê olhou diretamente para mim, séria. Naquele
instante parecia muito adulta, não pela severidade do olhar, mas pela sinceridade
que expressava:
– Se as pessoas que você diz serem suas amigas
fossem suas amigas de verdade, iriam gostar de você pelo que você é e não pelo
que você tem. Muito menos dariam uma festa e proibiriam você de entrar.
Naquela hora pensei: “quem é esta garota metida a
besta para falar assim das minhas amigas?”. Mas Memê me olhava tão seriamente
que engoli a frase, e tornei a mirar o playground, aborrecida. Um tempo depois
senti um tapinha nas minhas costas:
– Vem, acho que posso te arrumar um “convite”.
Eu não entendi muito bem o que ela quis dizer, mas
após insistir que eu fosse a sua casa, concordei em seguí-la. Memê morava com a
avó, D. Dora, senhora simpática que costumava distribuir doces no dia de São
Cosme e São Damião. “E não se esqueçam de Dom Um”, dizia ela, macumbeira que só, o
que deixava as crentes do condomínio enfurecidas! Apesar de todo discurso de
que macumba era coisa do demônio, eu sempre achava que D. Dora merecia o Céu
mais que algumas pessoas devotas de igrejas: ela sempre tinha um jeito doce
para conversar conosco, e quando proibia algo, explicava o porquê tão bem
explicadinho que a gente até se arrependia de ter pensado em fazer a tal coisa
errada; as outras, por sua vez, nos chamavam de capetas pra baixo!
O apartamento de Memê e D. Dora era como qualquer
outro naquela época: alguns santos espalhados na sala cor-de-rosa, cortinas de
continhas, colchas de retalhos cobrindo os sofás e cheiro de coisa velha.
Cumprimentei D. Dora, meio acanhada, enquanto Memê enfiou-se cortina adentro. A
velha senhora assistia à novela da tarde bebendo um daqueles sucos de xarope e
me ofereceu um pouco – lembro que estava delicioso, e aliviou um pouco a tensão
da situação inusitada. Memê logo voltou com uma boneca... na embalagem!
– Para você!
– M-mas está novinha! Você não quer?
– Meu pai sempre me dá uma dessas, só que eu não
brinco mais com bonecas. Pode levar.
Eu fiquei tão maravilhada que quando me lembrei de
agradecer, Memê já havia ido embora. Desci correndo para brincar com as meninas
e a Gina já ia me proibir de participar da festa, quando mostrei a boneca. As
meninas ficaram fascinadas: a boneca era rara, de uma edição limitadíssima. A
Gina ficou logo enciumada, e enquanto passava a festa tentando minimizar as
qualidades da “minha” boneca, eu pensei sobre o que a Memê havia dito sobre
amizade: ela, que nunca havia trocado uma palavra comigo, me deu um presente
raro; aquelas que sempre conviveram comigo, me excluíram da brincadeira quando
o que eu tinha não era suficiente para ficar por perto.
A festinha ainda acontecia quando peguei a boneca e
fui para casa sem falar com ninguém, mas antes passei na casa de Memê para devolver
o presente. D. Dora, cheia de bobes na cabeça e um sorriso largo no rosto, foi
chama-la. Memê esfregava os cabelos recém-lavados numa toalha quando entrou na
sala.
– Toma: acho que você não sabia que ela era uma
boneca rara, então trouxe de volta.
– Sim, eu sei disso, por isso dei para você!
Aquilo me surpreendeu
– Ela é sua, pegue.
Eu me agarrei à boneca, pois queria muito ficar com
ela. Memê abriu um sorriso e eu lhe agradeci, mas insisti em devolver.
– Sabe, você tinha razão – falei – elas gostaram
mais de mim hoje só porque eu tinha uma boneca rara. Elas não são amigas de
verdade!
Na manhã seguinte havia um embrulho em minha porta,
com o seguinte bilhete: “A Barbie falou que você é a melhor amiga
que ela gostaria de ter. Não aceito devolução”
A boneca era minha, oficialmente!
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