domingo, 29 de setembro de 2013

As crianças do meu quintal

Este conto foi publicado em 2008, na antologia de contos "O outro lado do Sol". Não há muito a se falar sobre ele: talvez evoque à Casimiro de Abreu e seus "oito anos", ao deixar subentendido a saudade daquela época em que tudo era divertido, mágico, puro. E se a nós, cuja mortalidade limitada nos concede eventualmente um desejo de voltar no tempo, que dirá daqueles seres cuja caminhada pelo mundo é contada através dos séculos?...

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Às vezes, no verão, uma brisa diferente surge, trazendo consigo o cheiro do passado, da época em que muitas cigarras agarravam a mim seu canto estridente. Época em que eu podia sentir no ar o cheiro dos filhos de minhas irmãs e em que meus frutos não eram ignorados. Eu podia ver o horizonte acima do telhado das casas e acompanhar o passeio do sol pelo firmamento. Mas desta época, o que eu sinto mais falta, é do barulho das minhas crianças.  
Eram em número bem menor do que as folhas em meus galhos, mas sua alegria valia por todas elas. Levantavam-se cedo e permaneciam muito tempo na casa, fazendo um não-sei-o-quê de coisas que os adultos mandavam - sei disso porque já as vi chorar inúmeras vezes por não terem cumprido suas tarefas antes dos adultos chegarem. Durante boa parte da manhã o cheiro de eucalipto do desinfetante misturava-se ao amaciante de roupas e se espalhava pelo quintal de terra batida, em cujo centro eu dominava. Podia ouvir suas vozes acompanhando as melodias dos rádios, e ver o pó saindo da tapeçaria pendurada na janela. Então, de repente, como se um cantar de galo as despertasse para o mundo lá fora, elas, todas de uma vez, saíam de suas casas para brincarem ao meu redor. Às vezes, traziam consigo miniaturas de suas casas e eu nunca entendi porque criar uma casa de mentira se já tinham uma de verdade. Outras vezes vinham sem nada, e ficavam correndo de um lado para o outro, uns se escondendo, outros procurando. Eu me divertia em ocultar os mais ousados no alto de meus galhos.
                Quando muito cansadas, minhas crianças montavam uma grande cama sob minha sombra e um deles – geralmente dos maiores – era escolhido para contar uma história, enquanto os outros adormeciam. Mas eu preferia os dias em que, sem vontade de dormir, subiam em meus galhos e fingiam estar em navios, aeronaves – estas coisas eu nunca vi, mas os pássaros me contaram que são muito grandes! – ou em qualquer outro lugar que suas mentes pudessem imaginar. Nas tardes em que o calor era insuportável até para mim, recolhiam a água de um poço, cujo lençol d’água também me alimenta, e com ela banhavam-se no próprio quintal, e criavam novas brincadeiras para se refrescarem.
                Não posso jamais esquecer das tardes de primavera, quando meus braços estavam arqueados pelo peso dos meus filhos, e as crianças se penduravam em mim, libertando minha cria, e a chuva de frutinhas negras manchava tanto suas línguas quanto suas roupas. Eu sentia um enorme prazer em vê-las saciadas com algo mais que eu podia lhes oferecer, além da sombra. Elas me davam tanta coisa, aquelas crianças...! Suas vozes, seus sorrisos, suas mãos pequenas tocando em meu tronco, querendo abraçá-lo sem conseguir, querendo saber o quanto mais eu iria crescer...
Houve uma vez em que no quintal apareceu um cãozinho. Eu sabia que as minhas crianças iriam amá-lo da mesma forma que os adultos iriam odiá-lo. Dito-e-feito, elas não se deixaram intimidar e o esconderam onde nem durante o silêncio da madrugada podiam ouvir seus gemidos. Que alegria poder vê-las brincando com ele durante o dia, dando-lhe carinho e comida, e, antes do sol se por, escondiam-no para jamais ser descoberto pelos adultos! Infelizmente, o segredo não durou até a lua seguinte; como disse, esconderam o pequeno animal tão bem escondido que não se pôde ouvir seus gemidos, nem de noite, nem durante os dias em que foram para um lugar chamado “Casa de Avó”. Quando voltaram, os adultos brigaram muito com elas – mas eu tenho certeza que a culpa foi da tal “máquina de lavar”, que estragou e não cuidou do cãozinho como deveria. Essas máquinas...! 
Enfim, tudo isso foi há tantas luas que eu nem sei ao certo quanto tempo faz. A vida para mim avança de maneira diferente dos homens. Só sei que um dia, após meu sono de inverno, acordei e não as vi. Primaveras se passaram, meus filhos pesaram em meus braços e ninguém veio aliviar o meu fardo. Eu ouvia suas vozes, bem cedinho ou muito tarde, vindas de dentro da casa. E me perguntava por que não vinham ficar comigo. As casas mudaram no quintal, cresceram, outros pequenos surgiram, alguns cujos rostos lembravam os das minhas crianças, mas não eram elas, não brincavam ao meu redor, não comiam dos meus frutos.

 Contei minha história aos pássaros e eles me disseram que além dessas montanhas de cimento que foram erguidas ao meu redor, onde nuvens negras não sufocam, mas trazem chuva, existem crianças iguais às minhas. Meu único desejo é um dia poder erguer meus galhos acima destes prédios e ver esse lugar. Minhas crianças estão lá, eu sei, vivendo e brincando, brincando, brincando...

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