sábado, 26 de julho de 2014

Resenha #1: Uma bondade complicada

Autor: Miriam Toews



Não leia esta história se você estiver deprimido ou triste, angustiado ou algo do gênero. Você cortará os pulsos. Por outro lado, se, e somente se, você já estiver no fundo do poço, perceberá que a única saída é subir, escalar as paredes de volta ou se deixar boiar enquanto o poço enche novamente – ok, esqueça esta alternativa pois pode demorar muito e tudo que sobrará até a água atingir a abertura do poço serão seus ossos! O importante é que ao fazer esta leitura e condenar – como eu! - a nossa anti-heroína, você estará automaticamente se livrando das prisões mentais que criamos ao nosso redor.

O livro narra a história de Nomi Nickel, uma jovem de 16 anos que vive em uma cidade canadense dominada por fundamentalistas cristãos. Na visão de Nomi, aquela cidade é o típico lugar onde as pessoas escondem suas frustrações embaixo do tapete e acreditam estar fazendo alguma coisa boa. Procuram, apontam e condenam os erros dos outros na tentativa desesperada de que ninguém encontre os seus. O comportamento radical abre precedente para os dois extremos: o do bom e do mal comportamento. Os jovens como Nomi vivem a fachada de uma vida “exemplar” mas  se esbaldam com drogas e festas de fundo de quintal. Cumprem seus períodos escolares mas não há perspectiva de futuro promissor – ou, no caso o desanimadora perspectiva de nascer crescer casar procriar e morrer. Viver é consequência, uma consequência ruim até, pois pelos preceitos daquela religião, a felicidade não deveria ser incentivada –ao menos foi o que eu entendi.  

À esta altura você se pergunta: e porque ela não vai embora deste lugar? Porque fizeram isto antes dela. Sua mãe e sua irmã mais velha foram embora, deixando ela e o pai sozinhos a enfrentar a “piedade” dos cidadãos locais. Não há muros, não há amarras, mas ela se prende ao pai para não ir embora, com medo de ser egoísta como a mãe e a irmã. Há um mundo de poucas palavras entre eles, e um medo implícito em ambos de que Nomi faça como as outras. Aliás, desde o início o leitor já sabe que mãe e irmã abandonam a família – inclusive está na sinopse do livro – e tem uma breve noção do porquê. Mas á medida que a história vai avançando, vamos nos aprofundando  nos motivos de cada um, mesmo que somente sob a ótica de Nomi, e compreendendo as amarras que a prendem.  Pense em crescer achando que uma coisa é errada e de repente dentro de sua própria casa certo e errado se confrontam, e o errado vence. Como fica a sua mente?

Há uma cena particularmente interessante em que, após ser despertada mais uma vez pelos gritos da filha que chorava pela partida da irmã, a mãe de Nomi a pega pela mão e a leva na casa do pastor – que também é seu irmão. “Peça perdão à ela”, ela diz “Peça perdão à ela e diga que sente muito”. O homem está exasperado por ter acordado de madrugada e a Nomi, ainda uma criança, não entende muito bem o que a mãe quer dizer com tudo aquilo. Mas ela chorava todas as noites, não só porque a irmã foi embora, mas principalmente porque em sua cabecinha manipulada a irmã estaria à caminho ou já no inferno e ela não queria este destino para a amada irmã – ninguém quer! E a mãe sabia disso, e mais, sabia que sua filha mais nova estava sofrendo por uma coisa que ninguém tinha de fato certeza, sofrendo porque estava sendo criada sob o regime de uma fé cega que não poderia ser questionada, sem que houvesse condenação. E o pior, ela mesma, a mãe, começava a se questionar. O pedido de perdão do pastor era um jeito de dizer para a filha “Calma criança, não é tão radical quanto parece”.

E seis meses depois da partida filha, a mãe de Nomi também vai embora, e só então esta passa a questionar um pouco mais as afirmativas ao seu redor, “a bondade complicada” que dá nome á versão em português deste livro.


O livro é todo em primeira pessoa e hora se confunde como um diário de pensamentos, hora como um evento cotidiano. Nomi é uma adolescente e sua escrita é confusa e isso é chato inicialmente na história mas se revela uma tacada perfeita. Em uma frase a autora exprime toda uma ação deixando á nossa imaginação os detalhes. Por exemplo, ao invés de descrever uma cena em que põe fogo em um carro, como e porque aquele ato foi feito, ela simplesmente escreve “lavei as mãos mas ainda cheiravam á gasolina que joguei no carro em frente ao motel antes de queima-lo” ou simplesmente “podia sentir daqui o cheiro da fumaça do carro que incendiei antes de voltar para casa”. E corta para outra cena. 

Relembrando, não leia este livro se estiver se sentindo para baixo; é um livro de uma narrativa infeliz.Mas com paciência e persistência, com o auxílio da psicologia reversa pode-se tirar dele lições e buscar soluções até para os nosso problemas. Já dizia um conto em que um jovem procurava um sábio para auxiliá-lo a resolver os seus problemas dizendo que a vida não seguia adiante por causa deles. O sábio de agarra a uma pilastra dizendo que não conseguia fazer nada porque aquela pilastra não deixava. O jovem simplesmente diz "solte a pilastra". "Taí a sua resposta", diz o velho sábio.

Ás vezes não são as coisas que nos prendem: somos nós que nos aprisionamos à elas. 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Escritos feitos de Música I - Amanhã é 23


Já ouviu uma música e se descobriu criando uma história para encaixá-la? Como se tivesse criando seu próprio clipe para ela?
Então, com alguns escritores isto acontece constantemente. Basta ouvir alguns versos e lá está a vida inteira de um personagem.
Esta é a terceira história que escrevi baseada em uma música. Deveria ser publicada em agosto mas resolvi antecipar. Ela não pede uma introdução como as outras. É completa por si só.
Enfim, ainda com poucos minutos de folga...

Amanhã é 23!

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       Ela limpava o jardim quando uma brisa suave trouxe-lhe o cheiro do passado, da pequena casa vermelha onde vivera, a última em uma vila do subúrbio. Aquela época, que muitos considerariam difícil pela sua situação de poucos recursos, ela considerava como o auge de sua felicidade. Afinal, naqueles tempos, ela ainda tinha sua filha.

       - Que dia é hoje? – perguntou ao jardineiro
       - Hoje é dia 22 de agosto, senhora.

       Sim, agora entendia o porquê da recordação. Amanhã é 23. O dia do aniversário de sua filha. Aquela que criara e educara, isenta de clichês, com todo carinho, dedicação e amor que aqueles que não tiveram mães ou as tiveram ausentes poderiam ofertar. E ainda assim, perdera sua filha para o mundo.
       
       Era uma criança quieta e muito educada, o que lhe era motivo de orgulho. Nunca reclamara da falta de presentes no Natal, muito menos da pouca comida. Sorria resignada e dizia com convicção “um dia vou tirar nós duas deste lugar”. A pobre mãe sentia o coração apertar por não poder dar mais à filha. Seu corpo já não sustentava mais as jornadas duplas de trabalho, mas não esmorecia; chegar em casa e ser servida pelo modesto, porém apetitoso jantar que a filha lhe preparava com mais uma nota 10 no boletim lhe fazia crer que todo o esforço valia á pena. Viviam em um castelo sem rei. Seu tesouro não estava escondido em cofres mas no pulsar do coração de sua filha.

       Ela não sabe precisar quando tudo começou a ruir. Aos treze a menina bateu o pé e decidiu ir trabalhar. O dinheiro à mais auxiliaria nas contas e daria descanso á mãe nos finais de semana. De fato, o corpo da mulher não aguentava mais as faxinas de domingo à domingo, mas ainda assim foi com muita relutância que aceitou. Tinha um profundo medo das más companhias que sua filha poderia encontrar, afinal, sabia tão pouco da vida... ou será que sabia?
     Aconteceu que a jovem não se envolveu com más companhias, não usou drogas nem ficou grávida precocemente. Manteve-se aplicada nos estudos e competente em seu trabalho, sem nunca reclamar. Quando a mulher adoeceu a jovem tomou o lugar da mãe, provendo-a de tudo que necessitavam e um pouco mais: a casa fora consertada, móveis novos foram comprados, porém, o sorriso da filha, foi transformando-se em um esgar triste e cansado.

“Está acontecendo alguma coisa querida?”
“Não mamãe, apenas estou trabalhando demais!”
“Assim que eu melhorar volto a trabalhar e você poderá descansar!”
“Não mamãe, não quero que você faça isso. Já trabalhou demais por mim, deixe-me agora fazer isso pela senhora”

Aquelas palavras comoviam a pobre senhora. Porém incomodavam-lhe a solidão e a quietude de sua filha.

“Você nunca traz os seus amigos aqui”
“Não quero lhe dar trabalho mamãe!”

       Foi então que o homem chegou. A mulher nunca o vira de fato, apenas pelas fotos que a filha espalhara no quarto. A jovem estava feliz, a mulher também. Mas ao perguntar quando veria o tal, a breve resposta era a mesma: “quando ele puder”. O anel surgiu no dedo da filha de repente. “Ele não deveria vir aqui falar comigo?”. “Mamãe, os tempos são outros! A senhora está feliz por mim não está?”.
       O casamento aconteceu poucos meses depois. Tão de repente, que a mãe não fora convidada. “Ele não quis festa mamãe!”. Sim, ele não quis festa. Mas por que não pode ajudar a filha a escolher um vestido – não que o vestido escolhido não fosse deslumbrante com suas pedrarias e finíssimos detalhes bordados! – e daquelas pessoas estranhas nas fotos da cerimônia? “Precisávamos de testemunhas mamãe”

        A filha saíra de casa em uma daquelas chuvosas manhãs de novembro, sem levar uma peça de roupa sequer. Disse que retornaria para buscá-las, mas quando voltou foi para deixar a mãe doente em uma casa de repouso. “Entenda, eu não posso ficar com a senhora, não teria como cuidá-la em minha casa. Aqui eles poderão auxiliá-la e nada irá lhe faltar!”. Este fato acontecera há anos. Inicialmente a filha ia visitá-la todos os meses, mas com o tempo as visitas tornaram-se escassas, contornadas através de cartas; que não tardaram a rarear também. Na mais recente visita – não tão recente assim! – a mulher olhou profundamente para a filha e comparou-a com o retrato da mesma que tinha em sua cabeceira, quando aquela era mais jovem. A filha sempre fora uma pessoa quieta, isso não se podia negar, porém havia uma aura de serenidade ou determinação ao seu redor, dependendo da situação. A mulher em sua frente não apresentava isto.
“Você é feliz, minha filha?”
A pergunta pareceu surpreender a filha
“Como não poderia ser? Tenho um ótimo marido, dois filhos maravilhosos, uma bela casa... como não ser feliz?”
A senhora suspirou: não, sua filha não era feliz. Havia nela um ar de superioridade e arrogância que não lhe pertencia. E tristeza. Tristeza camuflada, enterrada no fundo da alma para que ninguém visse, ninguém percebesse, em seu falar altivo e sua seriedade. O que sua filha se tornou, quem era aquela mulher á sua frente?
“Quando vou conhecer as crianças?”
“Ora mamãe você sabe, elas são ocupadas. E meu marido não gosta que eu as traga aqui”
“Mas você ainda é a mãe, não é? Se quiser pode muito bem trazê-las”
A filha nada respondeu. Simplesmente fitou o vazio e deixou seu olhar perder-se ali por alguns segundos. Despediu-se da mãe e até então não apareceu mais.

       De repente, algo pareceu clarear do portão, libertando a senhora de sua viagem ao passado. A miopia não lhe permitia distinguir traços, mas ali estava uma jovem, trazendo duas crianças consigo. A luz do sol ia de encontro á eles, fazendo-os parecer um afresco italiano. As crianças correram de encontro à senhora no jardim e um sorriso plácido iluminou o rosto da jovem mulher que chegava.
“ - Trouxe-lhe as crianças mamãe!”
Eles se abraçaram, e o coração da senhora encheu-se de alegria. Mas ao abrir os olhos, percebeu que continuava sozinha no jardim, exceto pelo jardineiro. Uma brisa quente passou por ela, e levou o passado embora.

       - Eu tenho uma filha sabia? Ela mora em uma casa grande muito bonita, com um marido maravilhoso e meus dois netos. Amanhã é 23? É... amanhã é aniversário dela. Faz 30 anos... acho que vou separar estas flores para ela, quem sabe ela vem me visitar?


       O jardineiro sorriu e continuou a preparar a terra do jardim, Há muitos anos que trabalhava naquela casa, naquele asilo, e há muitos anos ouvia conversas como aquela. Ficaria feliz pela senhora se sua filha aparecesse.
          Mas, como já foi dito, há muito tempo que ele ouve histórias assim...




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Perseverança

No mundo dos sonhos o tempo é algo imensurável
Há dias que parecem segundos...
Segundos que parecem horas...
Agora me diga: quanto tempo de sua vida você estaria disposto a ceder para realizar um sonho?

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       Havia naquele bairro um terreno baldio, no qual o dono certa vez plantou uma bananeira e sem querer despertou ali um elemental adormecido. As bananeiras, quando não domadas, se alastram de maneira imprecisa, porém sempre em busca da água, morrendo, e nascendo daquelas que já partiram. Ás vezes, apesar da imprecisão, formam um círculo perfeito, como homens celebrando em uma fogueira ao luar.
      Era assim que a criança índia, moradora do terreno vizinho as via. Quando o luar incidia no terreno, as sombras faziam com que as bananeiras parecessem pássaros; a brisa suave lembrava uma dança de roda, quando as folhas secas de umas tocavam o caule delgado das outras. A criança via e sentia a vida em movimento naquele lugar. E sua imaginação transformava as simples bananeiras em seres de outro mundo: fadas ou fantasmas dançantes, que cochichavam segredos incompreensíveis nas noites de lua cheia.
       Foi este olhar admirado lançado pela índiazinha às bananeiras que despertou naquele Ser de essência única a vontade de tocá-la - a índiazinha nunca pusera os pés no terreno vizinho. Resolutas, as bananeiras nasciam e morriam, movimentando-se lentamente em direção à casa da menina.

      Os amores vem e vão, e se um dia a pequena amou as bananeiras, quando jovem, o luar e os raios de sol entrando em sua janela tornaram-se seus novos amores. A massa verde ali em frente impedia-lhe este prazer e ela passou a odiar as árvores, que agora via como mau agouro. Seu olhar de ódio magoou o Ser Único, mas não diminuiu a sua vontade de tocá-la; morte após morte avançava em direção à casa vizinha.

     O tempo a passou. Linhas irregulares surgiram nos olhos da índia, e a sombra abaixo de seus olhos fatigados não diminuíram a beleza do seu olhar, que às bananeiras agora era escasso, mais voltado para a criança que se agarrava em suas pernas. Ainda assim o Ser Único não desistiu, e nascimento após nascimento, aproximava-se da casa. Já estava quase a um corpo de distância quando algo o impediu: em sua obstinação não percebeu que os homens vinham cercando os limites de seus terrenos. As permeáveis cercas de arame farpado foram substituídas por tijolos maciços; sua frágil raiz não podia ultrapassá-los. Pela primeira vez chorou. E sucumbido pela dor, adormeceu. Suas filhas no entanto, ou a parte dele que nascia e morria, habituadas a seguir em direção à casa, continuaram naquela missão, nascendo e morrendo até formarem uma fileira ao lado do muro.

       Quando o Ser Único finalmente acordou, tudo estava mudado. O muro continuava ali, mas a casa da indiazinha agora era mais alta. Da janela superior dois pares de olhos negros miravam ele e suas filhas (que eram ele na essência!). Reconhecia aquele olhar, mas não sabia à qual deles dirigir o seu amor: ao rosto cujos olhos descansavam sobre a face flácida, coberta de linhas e emoldurado por uma cabeleira branca, ou para a criança aninhada no colo da primeira, de pele firme e olhos brilhantes?

       Conversavam sobre ele:
       - Pedirei ao vizinho para que corte algumas, assim tomarás Sol ao amanhecer...
       - Não faças isso vovó, eu gosto delas.  Parecem as tribos antigas reunidas na fogueira sob a luz do luar!

       A velha sorriu, e o coração do Ser Único recobriu-se daquele amor antigo. A brisa que corria tornou-se um vento maroto, e a criança de olhos de jabuticaba e cabelos cor da noite estendeu as mãos através da janela para senti-lo. "Um braço de distância agora", pensou o Ser Único. 
      Uma de suas folhas rígidas cedeu á insistência do vento, prestes a tocar nas mãos da criança.
     - Cuidado! - gemeu a avó, mas já era tarde: a folha cobriu as duas mãos, a da velha e a da criança, numa fração de segundo que para o Ser Único seria eterno.

Muitos anos mais tarde o fogo lambeu aquela terra. Mas o Ser Único vivente naquelas bananeiras morreu feliz...!  



domingo, 23 de fevereiro de 2014

Desejo para o ano que vem...

Porque ás vezes, perceber a grandeza do que somos é o que nos torna fortes para enfrentar o mundo...
Com quase 3 meses de atraso:
                   
Feliz Ano-Novo!

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            Era véspera de final de ano. Como sempre fazia, sentou-se à escrivaninha para enumerar as coisas que gostaria que acontecessem no ano que estava por vir. Enquanto escrevia, lembrava-se dos desejos feitos há exato um ano atrás, muitos não realizados, e pensava nos motivos pelos quais isto não aconteceu. Pensando e pensando, concluiu que seus desejos deixaram de acontecer pela sua própria insegurança, seu medo de arriscar no novo, seu medo de errar.
            O lápis ficou suspenso no ar. De súbito, arrancou a folha do caderno onde estavam os desejos, embolou-a e lançou-a na lixeira. Resolveu fazer diferente: ao invés de enumerar as coisas que queria que acontecessem, enumeraria as coisas que não gostaria que acontecessem, melhor, tudo aquilo que achasse ruim em sua vida, aquilo que não gostava, maus sentimentos, más ações, receios, tudo.
           Animado com a ideia, o lápis começou a agitar-se em sua mão, querendo desenhar o papel. Ela pensou em algo que sempre fazia, mas que detestava: tinha medo das pessoas. Odiava a sensação de insegurança que determinadas pessoas lhe passavam e a maneira como se portava diante delas. Logo este seria o item que encabeçaria a sua lista. Mas, de repente, estacou. Passou pela sua mente que sem esta insegurança, sem esta relutância em tomar determinadas atitudes, poderia tornar-se uma pessoa desagradável e inconveniente. Então pôs isto nas linhas seguintes. Pronto: lá se foi a insegurança, mas ainda seria agradável e necessária.
          Suspendeu o lápis novamente: nem sempre ser desagradável é ruim. Existem situações em que é necessário uma resposta mais enfática para evitar atritos e mais aborrecimentos. Não, ela não queria ser semelhantes aos estúpidos, que acatavam a tudo sem protestar, sem expor suas opiniões. E, mais uma vez, o lápis voltara a riscar o papel, orgulhoso da tarefa que realizava. Incrível como as lembranças fluíam em sua mente, das atitudes cometidas contra a sua pessoa, o ódio que sentira e o receio de reagir, as brigas que tivera, o reflexo de sua frustração, diante da incapacidade de confrontar uma situação, vazando pelos seus olhos...  
          Estacou. Apesar de ruins, aquelas sensações bem ou mal lhe foram convenientes em determinados momentos. Se não brigasse por algo que desejava talvez jamais o teria; se não chorasse por um motivo qualquer, a mágoa nunca sairia do seu coração. Deixar de reagir a provocações já salvou muitas vidas, enquanto que a atitude contrária só fez perder.
         Pouco a pouco a borracha tomou o lugar do lápis, apagando as palavras do papel, até não haver nada mais escrito. Buscou no fundo de sua mente, mas não encontrou o que escrever, pois para cada palavra que pensava merecer estar na lista, havia uma justificativa para que ela não precisasse estar. Deitou o lápis no papel e ficou ali a admirar a folha em branco: nela continham todas as coisas que considerava ruins em sua vida. Percebeu então o quão importante são os pequenos tropeços que damos em nosso caminho e principalmente como amava seu próprio jeito de ser. Haviam poucas iguais a ela no mundo, mas não era melhor nem pior que ninguém: era simples, única e exclusivamente ela.
         O sorriso saiu furtivamente de seus lábios, iluminando seu rosto. "Que bom que está em branco", pensou. E erguendo-se da cadeira, foi até a lixeira de onde retirou um papel embolado, cujo conteúdo eram as coisas que desejava que acontecessem no ano que estava por vir.
          E pôs-se a escrever.


Para Jack

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A casa de Iris

Nós nunca entendemos que tudo na nossa vida tem um propósito. Creio que seríamos mais felizes se ao invés de brigar contra aquilo que carregamos, tentássemos compreender e assim, usar aquilo como uma ferramenta para alcançarmos coisas boas. Bem, eu só acho...
Pois tenho certeza quem quer quer que leia a história que contarei à seguir, irá dizer que Iris, - como ela também pensava -  tinha um problema.
Eu digo que Iris tinha a solução :) !


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           O mundo de Iris é branco. Tudo aquilo que ela vê é branco: o céu é branco, o Sol é branco, as árvores, as ruas, as praças, os animais... As pessoas são fantasmas, distintos somente pelo som de suas vozes, e uma ou outra curva de seu contorno em linhas escuras – no mais, tudo é branco.
           E ela não era feliz. Iris queria ser como os outros que veem todas as cores, quer senti-las tal qual pássaros e insetos são pelas flores atraídos. Iris desejava o frescor do verde, o calor do laranja, a tranquilidade do azul... mas ela não tinha isso. Pois tudo o que Iris via era branco.
           Até que um dia ela fugiu para um lugar distante, tão nos confins do mundo conhecido que alguém jamais ousara chegar lá: atravessando as fronteiras do desconhecido, ela encontrou-se à beira de um penhasco e sem ter para onde seguir e não querendo voltar, decidiu construir ali a sua morada pois para sua surpresa, descobriu que ali ela podia ver as cores! Decidiu que pintaria sua casa com todas as cores do mundo. A cobertura seria anil, com nuvens douradas, anunciando o crepúsculo. Na sala, todos os tons de verde, ilustrando as matas e, nas circulações adjacentes, todo colorido da flora. Em seu quarto, o fios dourados sob nuvens rosadas num eterno alvorecer. Cidades cinzentas na cozinha, o marrom das estradas do campo na adega, a fúria e a turbulência do azul do mar em sua sala de banhos... em diversos cômodos, Iris pintou toda fauna, e as diferentes raças humanas e as diferentes estações.
           E foi assim, pintando, pintando, que pintou-se também o que não se pode ver nem tocar, mas se pode sentir: lá estava o vermelho da paixão e do ódio, a alegria do amarelo, a delicadeza do rosa-bebê, o roxo do ciúme, a depressão em azul-marinho, a dor surda do cinza, a fúria marrom... quase insana, Iris pintava sem parar.
           Até que a chuva, pura e cristalina, chegou, e a tinta fresca da casa de Iris desbotou. Foi-se um pouco do verde das matas, foi-se parte do céu azul... Os raios de sol misturaram-se com as cidades cinzentas, que invadiram as estradas do campo e tomaram os animais. As cores se fundiram e uma maravilhada Iris via a cascata multicor escorrendo pelo telhado juntar-se  com os rios de sentimentos que fluíam pelo chão, e que juntos atravessavam o penhasco; quase únicos, desaguavam no mar.
          E se aqueles filetes tinham todas as cores, Iris pensou que o oceano seria a miscelânea de tons que ela tanto desejara ver. Insana, correu para avistar o mar. Lá chegando, primeiro se espantou; depois, finalmente compreendeu, e por fim sorriu: no mar, ao unirem-se todas as cores de Iris, novo branco se formou.     

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PS: A imagem que encabeça esta história é da Turma da Mônica, desenhada e roteirizada por Mario Cau e publicada no livro MSP+50 sob o título "para estar junto". Ilustra esta história pois ambas, esta e a do Mário,  retratam através das cores o antagonismo dos sentimentos que carregamos dentro de nós. Para a leitura desta, acesse: http://www.mariocau.come descubra um pouco mais do trabalho deste artista, e porque da associação entre ambas!



domingo, 29 de setembro de 2013

As crianças do meu quintal

Este conto foi publicado em 2008, na antologia de contos "O outro lado do Sol". Não há muito a se falar sobre ele: talvez evoque à Casimiro de Abreu e seus "oito anos", ao deixar subentendido a saudade daquela época em que tudo era divertido, mágico, puro. E se a nós, cuja mortalidade limitada nos concede eventualmente um desejo de voltar no tempo, que dirá daqueles seres cuja caminhada pelo mundo é contada através dos séculos?...

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Às vezes, no verão, uma brisa diferente surge, trazendo consigo o cheiro do passado, da época em que muitas cigarras agarravam a mim seu canto estridente. Época em que eu podia sentir no ar o cheiro dos filhos de minhas irmãs e em que meus frutos não eram ignorados. Eu podia ver o horizonte acima do telhado das casas e acompanhar o passeio do sol pelo firmamento. Mas desta época, o que eu sinto mais falta, é do barulho das minhas crianças.  
Eram em número bem menor do que as folhas em meus galhos, mas sua alegria valia por todas elas. Levantavam-se cedo e permaneciam muito tempo na casa, fazendo um não-sei-o-quê de coisas que os adultos mandavam - sei disso porque já as vi chorar inúmeras vezes por não terem cumprido suas tarefas antes dos adultos chegarem. Durante boa parte da manhã o cheiro de eucalipto do desinfetante misturava-se ao amaciante de roupas e se espalhava pelo quintal de terra batida, em cujo centro eu dominava. Podia ouvir suas vozes acompanhando as melodias dos rádios, e ver o pó saindo da tapeçaria pendurada na janela. Então, de repente, como se um cantar de galo as despertasse para o mundo lá fora, elas, todas de uma vez, saíam de suas casas para brincarem ao meu redor. Às vezes, traziam consigo miniaturas de suas casas e eu nunca entendi porque criar uma casa de mentira se já tinham uma de verdade. Outras vezes vinham sem nada, e ficavam correndo de um lado para o outro, uns se escondendo, outros procurando. Eu me divertia em ocultar os mais ousados no alto de meus galhos.
                Quando muito cansadas, minhas crianças montavam uma grande cama sob minha sombra e um deles – geralmente dos maiores – era escolhido para contar uma história, enquanto os outros adormeciam. Mas eu preferia os dias em que, sem vontade de dormir, subiam em meus galhos e fingiam estar em navios, aeronaves – estas coisas eu nunca vi, mas os pássaros me contaram que são muito grandes! – ou em qualquer outro lugar que suas mentes pudessem imaginar. Nas tardes em que o calor era insuportável até para mim, recolhiam a água de um poço, cujo lençol d’água também me alimenta, e com ela banhavam-se no próprio quintal, e criavam novas brincadeiras para se refrescarem.
                Não posso jamais esquecer das tardes de primavera, quando meus braços estavam arqueados pelo peso dos meus filhos, e as crianças se penduravam em mim, libertando minha cria, e a chuva de frutinhas negras manchava tanto suas línguas quanto suas roupas. Eu sentia um enorme prazer em vê-las saciadas com algo mais que eu podia lhes oferecer, além da sombra. Elas me davam tanta coisa, aquelas crianças...! Suas vozes, seus sorrisos, suas mãos pequenas tocando em meu tronco, querendo abraçá-lo sem conseguir, querendo saber o quanto mais eu iria crescer...
Houve uma vez em que no quintal apareceu um cãozinho. Eu sabia que as minhas crianças iriam amá-lo da mesma forma que os adultos iriam odiá-lo. Dito-e-feito, elas não se deixaram intimidar e o esconderam onde nem durante o silêncio da madrugada podiam ouvir seus gemidos. Que alegria poder vê-las brincando com ele durante o dia, dando-lhe carinho e comida, e, antes do sol se por, escondiam-no para jamais ser descoberto pelos adultos! Infelizmente, o segredo não durou até a lua seguinte; como disse, esconderam o pequeno animal tão bem escondido que não se pôde ouvir seus gemidos, nem de noite, nem durante os dias em que foram para um lugar chamado “Casa de Avó”. Quando voltaram, os adultos brigaram muito com elas – mas eu tenho certeza que a culpa foi da tal “máquina de lavar”, que estragou e não cuidou do cãozinho como deveria. Essas máquinas...! 
Enfim, tudo isso foi há tantas luas que eu nem sei ao certo quanto tempo faz. A vida para mim avança de maneira diferente dos homens. Só sei que um dia, após meu sono de inverno, acordei e não as vi. Primaveras se passaram, meus filhos pesaram em meus braços e ninguém veio aliviar o meu fardo. Eu ouvia suas vozes, bem cedinho ou muito tarde, vindas de dentro da casa. E me perguntava por que não vinham ficar comigo. As casas mudaram no quintal, cresceram, outros pequenos surgiram, alguns cujos rostos lembravam os das minhas crianças, mas não eram elas, não brincavam ao meu redor, não comiam dos meus frutos.

 Contei minha história aos pássaros e eles me disseram que além dessas montanhas de cimento que foram erguidas ao meu redor, onde nuvens negras não sufocam, mas trazem chuva, existem crianças iguais às minhas. Meu único desejo é um dia poder erguer meus galhos acima destes prédios e ver esse lugar. Minhas crianças estão lá, eu sei, vivendo e brincando, brincando, brincando...

domingo, 11 de agosto de 2013

O Conto da Mulher que se Perdeu

Acho que para começar, nada mais justo do que informar a vocês os perigos de se atravessar o universo da imaginação: você pode querer ficar por lá! Não, não estou brincando. Você pode se sentir tão sozinho no mundo real, que a fantasia será seu único recurso de sanidade, e é aí que mora o perigo, pois para as pessoas do mundo real você se tornará insano! Meu conselho: equilíbrio é tudo. Deixe as divagações para detrás das cortinas, ou para alguém em quem confia muito e que entenda que esta é sua maneira de encarar as coisas - não tente convencer ninguém, apenas mostre para ele as inúmeras possibilidades. Afinal, tudo o que temos hoje em nossas vidas foi sonho um dia, não foi? Jogue suas pistas; às vezes você encontra sonhadores e divagadores como você onde menos espera (eu já encontrei um num restaurante: era um jovem garçom que me atendia e sentia uma vontade enorme de falar sobre o livro que eu estava lendo, que ele gostaria de ler também!).

Estou explicando isto por causa da história a seguir. Se aconteceu? não sei dizer. Chegou até a mim pelas mãos da noite. Porque todos nós um dia nos sentimos perdidos na escuridão, não é mesmo?!
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Houve uma vez uma mulher que não conseguiu crescer. Não, ela não ficou presa em um corpo de criança como aquele ser de cabelos espetados e roupa verde que todos conhecem; seu corpo amadureceu, sua mente evoluiu, mas ela não conseguiu se adaptar. 
E sofreu. 
E seu sofrimento atravessou as fronteiras do mundo conhecido e alcançou uma amizade antiga, aquela que temos somente quando crianças, e que depois se esvai como a bruma da manhã: tão de repente, que duvidamos se ela alguma vez estivera presente.

Seres oníricos são puros e inocentes. Não são capazes de compreender a diversidade dos sentimentos, os sentem cada qual de cada vez. Quando aquele chamado o atingiu, o alado ser onírico só teve compaixão, e esquecida de todas as regras de que homens acima da puberdade não devem entrar no mundo místico, levou a mulher de volta ao paraíso de sua infância. Lá, ela voltou a sorrir; somente lá, ela conseguia ser feliz. Não pesaram, no entanto, as consequências de suas ações para o mundo real. Ninguém via a amiga acompanhar a mulher enquanto esta caminhava pelas ruas; aos olhares alheios, parecia que esta falava sozinha. Em um mundo onde a imaginação é ceifada cada vez mais cedo, nem mesmo as crianças eram capazes de ver a amiga esvoaçante. A mulher por sua vez passava a maior parte do dia esperando o próprio adormecer, quando seria levada para o outro mundo. Aos olhos dos outros, isto não era normal.  

Então eles chegaram. Com seus uniformes brancos, arrancaram a mulher de seu mundo maravilhoso. Convenceram-na de que ela era uma má influência, e que tudo era obra da sua imaginação. Deram-lhe remédios e um quarto novo em um lugar onde gritos ensurdecedores ecoavam durante a noite. Eram seus ou eram dos outros? Às vezes não sabia... Passou a ter medo de dormir, para que seus sonhos não a enganassem novamente: lhe disseram que só sairia daquele lugar se afirmasse que sua amiga não era real. Mas como podia ser saudosa de algo que não existia? Sentia falta de sua amiga, e em seu íntimo sabia que com o fechar de seus olhos os portões daquele universo mágico abrir-se-iam outra vez: ela correria para lá, era fato, e lá seria esquecida.

“-Ela tinha medo de dormir
- Por quê?
-  Por que quando ela dormia, viajava para mundos sequer imagináveis por alguém.
­- Mas o que isto tem de mais? Acontece com todos nós: chama-se sonho.
- Não, com ela era diferente. O fechar de seus olhos eram a chave que abria o portal para enviá-la a um universo desconhecido. Seus sonhos eram reais. E se ela se perdesse por lá, estaria perdida para sempre.”

A mulher sofria, a amiga sofria. Em seu mundo místico fora condenada a não atravessar o véu entre os mundos. Estava morrendo, não pela sua condenação, mas pelo amor e pela negação daquela que outrora fora a mais doce criança com quem brincara. Estava conformada. Somente vivia por que a mulher ainda acreditava nela. Quando isto deixasse de acontecer, ser-lhe-ia fatal.

Ambas esperavam.

Um dia, ouviu-se um chamado urgente, tão desesperado, que atravessou todas as fronteiras existentes. “Por favor, venha me salvar”

Então a amiga se foi.

Era uma bonita manhã de sábado quando os homens de uniforme branco a encontraram. Os raios de sol insinuavam-se através da cortina e talvez por isso o rosto da mulher estivesse tão corado. Ainda dormia. Dormia e sorria. Tinha nas mãos o símbolo antigo da Aliança entre Deus e os homens, que também era o símbolo dos seres místicos.

Só parecia, mas na realidade mulher não dormia. Ela sequer estava ali. Corria com sua amiga onírica pelas terras esquecidas na memória de sua infância, perdida para sempre naquele mundo encantado de onde nunca deveria ter saído.

Os homens então fecharam a cortina, cobriram seu rosto e finalmente a deixaram brincar em paz.